segunda-feira, 23 de maio de 2011

HISTÓRIAS CURTAS(2)


LETREIROS

“Eu te vejo sair por aí/ Te avisei que a cidade era um vão/ Dá tua mão/ Olha pra mim/ Não faz assim/ Não vai lá não// Os letreiros a te colorir/ Embaraçam a minha visão/ Eu te vi suspirar de aflição/ E sair da sessão, frouxa de rir// Já te vejo brincando, gostando de ser/ Tua sombra a se multiplicar/ Nos teus olhos também posso ver/ As vitrines te vendo passar// Na galeria, cada clarão/ É como um dia depois de outro dia/ Abrindo um salão/ Passas em exposição/ Passas sem ver teu vigia/ Catando a poesia/ Que entornas no chão.”
(Letra da canção “Vitrines”, de Chico Buarque)

Meus olhos atentos sempre percorrem a cidade dos meus dias. Eu capturo imagens e cenas para transformá-las em palavras narradas no corpo do meu programa diário de rádio FM. Mas há algo além desse objetivo artístico ou além do que aparentemente importa do enfoque da notícia. Meu olhar possui o impulso voyeur e meus passos a disposição da busca do flaneur que perambula pelas ruas com sua secreta percepção da realidade através do seu factual ou incidental cotidiano.

Durante um mesmo dia de cada semana dos meses do ano eu chego pontualmente no meu horário e sento na cadeira da cabine da emissora. Coloco os óculos e retiro da pasta o texto escrito com as impressões da semana. Depois do ritualístico gole de água dou o sinal para a entrada da canção do Chico, “As Vitrines”, na abertura do meu programa “Letreiros”. Durante quarenta minutos eu narro meus devaneios urbanos. Diante dos meus papéis escritos eu retrocedo a memória dos passos pelos cantos da cidade, experimentando suas horas do dia ou da noite, entregando-me, sem resistência, às impressões da minha alma que bordeja avenidas e ruas, bares e lanchonetes, ônibus lotados de pessoas especialmente comuns, viventes da grandeza de suas vidas cotidianas.

Os ocorridos, fatos triviais ou inusitados que constroem os dias da cidade, que estão na mira da minha observação, ora casual, ora invasiva, são matérias dos meus temas. Eu devoro e rumino estes temas, todos que dizem da indiferente pressa das ruas ou de suas surpreendentes solidariedades; que dizem do ladrar dos cães vagabundos ou do silêncio dos que dormem nas ruas e, ainda, que dizem dos letreiros que infestam o centro com suas letras desenhadas em placas coloridas ou em luz neon, quando cai a noite.

Além da gente diversa que circula pelas ruas, que reza nas igrejas, que se alimenta nas lanchonetes e nos restaurantes de esquinas, que descansa preguiçosamente nos bancos das praças, embalando conversas cotidianas com o outro sentado ao lado, que caminham nas várias direções em busca dos seus afazeres, além de tudo isso, há algo mais que personaliza uma cidade, especialmente esta que é a minha. Toda paisagem urbana é própria e única quando observada com a atenção merecida. Percebe-se seus detalhes, o que é velho e novo, suas idiossincrasias arquitetônicas e os cheiros peculiares de cada avenida, de cada rua de flor ou lixo, de calmaria ou turbulência.

Quando eu ando pela cidade, na busca dos temas urbanos que apresento aos meus ouvintes, é possível traçar a geometria no mapa de lugares, você vê ladeiras, canais, becos, avenidas, edifícios, casas, telhados, concretos, asfaltos; você não tem idéia do que chamará sua atenção, do que vai lhe surpreender, mas há um impulso para seguir, observar, sentir.

Por isso digo tudo sempre tão abertamente aos que me ouvem, sobre os detalhes, dos mais belos, banais e inusitados aos mais estúpidos ou revoltantes, detalhes sobre os ônibus, sobre os mendigos, sobre os números escritos no alto das fachadas das casas quase em ruínas ou que já puseram o iluminado neon das modernas reformas. Às vezes é triste perceber que a história da cidade se perde em meio às suas modernas mudanças, como as fachadas das casas antigas que sempre me atraíram e que, aos poucos, foram sendo demolidas, cedendo lugar para os prédios comerciais ou residenciais.

Outro dia, enquanto andava pela rua, percebi um grupo de rapazes parados em frente a um prédio velho de uns seis andares observando uns artistas que evoluíam performances de teatro de rua, acrobacias e malabares. Havia uma pressa imensa das pessoas que não percebiam a simples beleza artística daquela apresentação. Elas passavam ao largo sem enxergar, iam empurrando pra frente o tempo, sem que se pudesse perder nenhum minuto por mais precioso que fosse. Moços e velhos, homens e mulheres, todos com pressa, sentindo a urgência da vida. Mas aqueles rapazes olhavam como se percebessem, pareciam ter sido tocados pelo instante de relaxamento. Aquilo me deixou feliz, como se ainda houvesse uma esperança de conexão humana na frieza da cidade. Então segui em frente levando o resquício daquele breve contentamento. No ponto de ônibus as pessoas aguardavam e eu fui ter com elas naquela espera cotidiana. O meu ônibus chegou depois da passagem do caminhão da prefeitura raspando o chão. Subi, esperei na fila caótica e apertada até chegar à roleta de passagem. Ainda consegui um lugar onde sentei junto da janela feito um saco de batatas jogado ou parecendo um cachorro cansado. Descemos lentos, circulando a praça e subindo a ladeira comprida rumo ao grande centro.

Ainda ontem, quando já voltava das minhas andanças ao final da tarde de sol parei a espiar a vitrine de uma papelaria. Havia muitas novidades além daquelas que se vendem em papelarias. Havia, por exemplo, umas miniaturas em resina com reproduções de monumentos famosos, daquelas com ligações elétricas que vão mudando de cor. Estava lá a Torre Eiffel, de Pizza, a Estátua da Liberdade, o Cristo Redentor, o Elevador Lacerda. Enquanto eu olhava ia pensando nos estranhos gostos dos cidadãos urbanos, nas quinquilharias absurdamente inúteis que as cidades acumulam para o fascínio consumista de suas gentes. Alguém passou por mim e também ficou olhando, talvez atraído pelo meu interesse na tal vitrine. Olhei para a desconhecida com um conformado sorriso e um gesto sutil de saudação. Segui meu rumo. Adiante, uma loja de roupas estava lotada, resultado da liquidação de final de estação. Aliás, parecem mais frios esses finais de tarde tão próximos do inverno.

Assim, nestas experiências dos dias eu recolho os conteúdos de cada emissão do meu “Letreiros” para expor esta cidade que a cada dia morre do jeito que foi para tornar-se outra no amanhã de logo mais. Há nisso tudo, nos meus sentimentos que também exponho aos meus ouvintes, um sentido maniqueísta, como quem se divide melancolicamente entre ter saudade das reminiscências de ontem e ter nas mãos as perspectivas inusitadas do amanhã.

Depois desses meus devaneios pensantes, meu colega na sonoplastia dá o toque. É a minha hora de dizer: “Boa noite, meus queridos ouvintes. No ar o programa que espia os dias e colhe o ar da cidade...Letreiros...dos meus olhos para os seus ouvidos”.

Genny Xavier

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Cenas urbanas...Cenas urbanas...Cenas urbanas...

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16 comentários:

São disse...

Para mim, é um dos eus mais interessantes textos.

Talvez porque também já colaborei num programa de rádio em jornais.

Além disso, também gosto de ver as cidades com olhos de ver e de apreciar com tempo o que torna vivas as suas ruas e praças.

Um abraço , Geny

Mar Arável disse...

Os contrastes

no inevitávael(?)

ciclo das marés

Anônimo disse...

Vem para a Academia Alambique!

Simples de coração disse...

Querida Genny...

Esse olhar sem pressa, esse olhar profundo, é o que falta para matar a pressa, o inimigo que não existe e que muitos são escravos deles. Belíssimo texto, e é assim mesmo o nosso olhar...Pena não poder te ouvir...Mas aqui posso te ler...

Muito grato pela visita...Para mim, é uma honra!1

Beijos!!

Ivan Costa

SAM disse...

Querida amiga,


Estou completamente encantada com cada pormenor das suas observações e impressões neste belo texto. A sintonia com o que você sente, pensa e procura nos aproximou de forma muito bonita e gostosa através da narrativa. Obrigada.


Carinhoso beijo Genny! Linda semana querida

Manuel Veiga disse...

admiravel teu talento. excelente descrição de ambientes.

na deambulação de teus passos e no suave colorido de tuas palavrss amei tua cidade...

beijos

Rita Santana disse...

Quero ouvir o programa. Grava, posta aqui e depois me ensina como fazê-lo. Ser locutora de um programa de rádio é uma loucura. Sempre quis um trabalho assim, acho genial; parabéns, Genny! uma comunicação direta. Felizes daqueles que podem ouvir suas palavras levando sensibilidade, arte e beleza para ocotidiano.Beijos!

Genny Xavier disse...

Queridos amigos e visitantes deste "Baú de Guardados",

O texto "Letreiros" é ficcional, cujo narrador é um personagem que é radialista. Gostaria imensamente de ter um programa de rádio que tivesse como tema a minha cidade...mas é um texto ficcional, resultado de uma série de pequenas histórias urbanas que venho escrevendo. Como outra que publiquei anteriormente neste blog com o título "Os escuros olhos da noite".
Mil perdões se não deixei isso claro no texto.
Beijos,
Genny

Rita Santana disse...

Perdão Genny! Mas a culpa foi da sua capacidade de exprimir tão bem a realidade inventada, e, principalmente, minha por ser assim tão dispersa,rarefeita nos pensamentos. Não li o título: histórias curts, não segui as pistas de leitura e mergulhei feito uma cobra-cega no devaneio do texto. Uma leitora desatenta, perdão.

2edoissao5 disse...

sem duvida o observação do cotidiano nos mostra variadas cenas que se bem aproveitadas, nunca vão se esgotar!!!

ANTONIO NAHUD disse...

Muito bom, amiga.
Continue nessa.

Abraços.

O Falcão Maltês

cristinasiqueira disse...

Oi Geny,

Ótima sacação do personagem de ficção.Convincente.
E as fotos reveladoras,ótimas.
Gostei muito.

Cris,
Apareça

Sol Maria Rodrigues disse...

[...]"como se ainda houvesse uma esperança de conexão humana na frieza da cidade.[...]
Senti o texto todo, mas essa frase, esse ai, foi direto em meu espírito.

ANTONIO NAHUD disse...

Cara amiga poeta, acabo de publicar seu texto no meu blog. Espero que goste. Deixe comentário e divulgue-o entre os seus!
Como disse anteriormente, pretendo no próximo ano publicar livro com uma seleção de textos do blog.
Abraços,

O Falcão Maltês

cristinasiqueira disse...

Genny,

Passei para lhe desjar um bom sábado.

beijos,

Cris

NUMEROLOGIA E PROSPERIDADE disse...

Espetáculo de espaço. Muito bom mesmo. parabéns.