segunda-feira, 29 de março de 2010

CRÔNICA:

A PERDA


Eu sabia que era preciso tempo. Cada perda tem sua hora de acabar, cada morto seu prazo de partir, e não depende muito da vontade da gente.”


Lya Luft


Nem sempre sei dar nomes às coisas que sinto como impulso de escrevê-las. Lidar com palavras em meio ao sentimento do mundo é a batalha mais íntima de quem escreve. Nesta luta de exercício literário, eu estive pensando, remoendo, elucubrando emoções e sentidos sobre minha vontade de escrever algo que me toca ou me sensibiliza neste tempo de sustos, indignações e surpresas que a vida nos impõe.

Resgatei de mim a ação do verbo perder e, muito mais que isto, a explosão dos abismos vulcânicos provocados pelo sentimento de algo, seja afetivo ou não, material ou não, que escapa das nossas mãos e bombardeiam o nosso espírito da mais temível e rastreadora sensação de impotência e pequenez.

O homem, em sua orgulhosa trajetória de “única” espécie tocada pelo dom divino da lógica, da racionalidade, da criação e da consciência, resiste bravamente à admissão de ser tomado como ser perdedor, pois nesta sociedade em que vivemos, os valores mais prováveis de prestígio, reconhecimento, respeito e dignidade, estão pautados na exclusividade, no sucesso ou no orgulho em exibirmos como troféus os objetos das nossas conquistas e das nossas vitórias, sejam no trabalho, nos esportes, nas artes e principalmente nos afetos.

A perda revolve sinônimos desagregadores: o fracasso, a desatenção, a redução, o abandono, a morte, o soco na boca do estômago, a raiva, a surdez.

A perda não arranca aplausos, nem prêmios, nem elogios, pode, no máximo, fluir condicionamentos ainda mais humilhantes para o imbatível "senhor da criação divina": a consolação e a piedade. E a sociedade, em sua dureza, reafirma o pensamento realista da "Seleção das Espécies": vence quem é forte, magnânimo, belo, rico e poderoso; perde quem é fraco sensível, feio, pobre e desprotegido.

É preciso aprendermos com as falhas e os tropeços inerentes à vida. Algo certeiro na vida é que somos falíveis, não há como mudar essa matemática lógica ou esse peso de medidas que estão sempre a se desequilibrar entre ganhar ou perder, acertar ou falhar. Quando todos à nossa volta dizem insistentemente que é necessário ganhar, alcançar e conseguir, estão esquecendo de nos lembrar que no livro da vida há lições que envolvem perdas. Todos nós, em algum momento vamos passar por isso. Saber lidar com as perdas e os fracassos nos evita o mergulho no poço fundo da dor ou da ausência da auto-estima.

Hoje, num tempo em que o colorido do mundo é uma ilusão de ótica, penso que poderíamos reaprender com os místicos e os monges, o exercício da respiração e do equilíbrio. Respirar fundo para se segurar contra a vontade da entrega aos abismos diante das perdas. Buscar o equilíbrio para que a harmonia revitalize sempre o nosso profundo afeto com nossa própria pessoa e com o outro. Talvez seja este principal desafio humano neste universo de desequilíbrios sociais, morais e afetivos. Perder pode não ser o fim, mas a nossa mais íntima releitura do nosso "estar no mundo".


Genny Xavier

9 comentários:

Nilson Barcelli disse...

Esta sua "crónica" bem poderia ser publicada em revista.
A Genny sabe o que diz e, para além disso, di-lo de uma maneira agradável para a leitura.
Todos perdemos muitas vezes na vida. Não há mal nenhum nisso, pois poderemos retirar dessas perdas alguns aspectos positivos, para aprendermos a não perder de novo.
Muito pior é perder a vergonha, a honra e outros valores que deveriam ser os pilares da sociedade actual. Mas que o são cada vez menos.
Amig Genny, desejo que tenha uma Páscoa feliz.
Beijos.

Anônimo disse...

Boa reflexão, Genny. Gosto do seu jeito singelo de escrever.

Beijo, moça.

A.S. disse...

Genny

Revejo-me plenamente em cada palavra do teu belo texto!

« Ama a vida, ouve as aves, olha as flores, vive intensamente o milagre de existires e terás atingido o máximo da tua infinita acidentalidade. Aí, serás eterno!»
(NOVALIS)

BeijOO
AL

Antonio Naud Júnior disse...

Amiga,
FLECHA CERTEIRA!
Um texto lúcido, tocante...
Beijops
TE AMO

Sr do Vale disse...

Um momento de reticências.
Lá dentro um coração pulsa, pulsa
Genny, de certa forma me vejo em sua crônica, ou seja como personagem principal, o que fica, sem ter tido o que perder, ou seja pela insistente maneira policromática de ver um outro mundo.

abraços.

Manuel Veiga disse...

pois é, nunca ninguém "apanhou porrada", como diz o Fernando Pessoa!

admirável lucidez e invejável texto

cumprimento-a

beijos

Leandro Afonso Guimarães disse...

Nada como uma beleza melancólica como essa, especialmente quando ela é muito mais que isso. Belíssimo texto, Genny.

Beijo

Ps: Como pediu, coloquei no blog o link para seguidores.

SAM disse...

Genny,

um texto que leva o leitor a uma profunda meditação pela lucidez e pelo equilíbrio de ser onde estamos sob tantos pesos. Imprescindível o "profundo afeto com nossa própria pessoa e com o outro", para "a nossa mais íntima releitura do nosso "estar no mundo".


Bravo, querida! Beijos, com carinho.

Unknown disse...

Genny,
Parabéns pela bonita crônica, gostei muito. Teu blog é ótimo.
beijos