segunda-feira, 16 de novembro de 2009

"Aprender: verbo auxiliar de existir" (Millor Fernandes)

CONTO: Genny Xavier


A PENA AZUL

Uma pequena pena de pássaro azul, trazida ao vento, entrou pela janela do meu quarto, fez rodopios e veio pousar sobre os papéis da escrivaninha. Seria um sinal indizível para anúncio de algo? Eu estava ali, deitado e nu, farto da vida, em plena manhã de quarta-feira. Nenhum mortal deveria ser obrigado a enfrentar uma manhã de sol depois de muitos uísques noturnos. É preciso que se respeite o direito à boemia. Mas estava eu ali, abrindo os olhos pesados, despertos por uma leve pena azul bailando ao ritmo da corrente de ar que entrava pela janela. A pena parecia querer me provar que viera ao mundo com a única função de voar, ainda que longe do colibri de onde se desprendeu.

Havia razões suficientes para eu ligar ao trabalho e justificar minha falta. Mas não liguei, se ligasse, talvez caísse na tentação de dizer para Josefina, a secretária, que um homem tem o direito de tomar uns uísques de vez em quando, principalmente depois de um chute no traseiro dado pela namorada, acometida de crise existencial agravada pela tpm crônica de todo mês. Josefina teria enchido o meu saco com aquele ar de lady inexpugnável. Para dizer: Um homem decente não se encharca de uísque em pleno dia útil, Dante. Porra! Aquela mulher de pedra parecia querer culpar a todos por sua vida gasta pela erosão dos tempos. Tava pouco me lixando para ela! E para Madalena também, com suas soníferas crises, recheadas de Lexotan, sempre a buscar o sentido das coisas ao seu redor: uma explicação para Cristo, uma explicação para Ets, para a expulsão do Dalai Lama do Tibet ou para as estátuas de Stonehenge. Mas talvez ela tivesse razão para achar que a realidade faz algum sentido, bem como os seus acontecimentos. Não estava eu ali a buscar um sentido para aquela pena azul?



Aos poucos, os sons pareciam acordar também aquela manhã de sol, contudo, vampirescamente, eu preferia que ainda fosse noite. Mas a pena estava ali, a me dizer que colibris não voam à noite, muito menos, para soltar suas penas. Levantei. Devagar, porque o mundo fazia giros em volta de mim. Desejei ser a pena desprendida de um colibri. Fosse leve, não sentiria minha cabeça como uma enorme bola de ferro.

A busca da minha mais desejada tranqüilidade naquela manhã de ressaca se constituía de três concessões imprescindíveis: o ócio, o desvendamento do vôo da pena azul e a ingestão de um antiácido eficaz. Do ócio, julgava-me no direito, visto que eu sempre me esforçava como funcionário eficiente; do antiácido, era precisava galgar uma exaustiva trajetória até o armário do banheiro. Mas, quanto à pena azul... Aquilo necessitava de uma investigação sobre os sinais do acaso e isso era algo que as minhas forças mentais teimavam embotar. Minhas conexões de neurônios pareciam mergulhadas na merda.

Escolhi fazer o que me parecia possível naquele momento. O possível seria refazer as conexões e tentar esquecer a náusea. A jornada física até o banheiro decididamente não me parecia tão atraente quanto o mistério da pena azul. Aí sim, constituía um desafio prazeroso ante todos humilhantes percalços da minha bebedeira e conseqüente ressaca. Seria bom desprender-se daquele fio de memória dos fatos da noite passada: A patética discussão com Madalena - como se todas as outras discussões anteriores também não tivessem sido patéticas. Frente aos bobos motivos de cada bate-boca nosso, pelos quais ela acreditava motivados pela incompatibilidade dos nossos signos, irrompíamos sempre as justificadas reconciliações tomando como crença o que sentíamos.

Finalmente, depois desses ponderáveis minutos de inusitada percepção da pena azul e de meus sofríveis incidentes na noite anterior, pousei o olhar em tudo que me tomava o espaço em volta da cama. Estava ali o meu quarto de homem solteiro, estava ali quase o meu universo doméstico inteiro, pois pouco me importava se o apartamento tinha uma cozinha espaçosa com um fogão novo pela falta de uso, aliás, era inteira uma cozinha nova pela falta de uso, porque eu quase não usava, porque comia na rua todos os dias do cotidiano da minha vida, porque as refeições íntimas, à luz de velas, sempre aconteciam na casa da Madalena ou de qualquer outra namorada que tivesse tido antes dela; se tinha uma sala com porta-retratos da família que minha mãe colocara espalhados na estante achando que eu iria adorar. Não adorei, mas estão lá até hoje. Fotos amarelas de tempo e poeira. O calor era sempre forte no apartamento, senão quando abria as cortinas que escondiam a porta de uma varanda minúscula contígua à sala. Mas o vento batia nas cortinas quando se abria aquela porta, isso me irritava muito, como se fossem panos esvoançantes de uma tenda no deserto. A poeira tomava conta de tudo.

Seria isso que a dança flutuante da pena queria de mim? Que olhasse à minha volta e questionasse meus objetos? Se esticasse o braço tocaria o lustre do teto? Percebi algum dia aquele lustre? Também notei algum dia a pintura das paredes, sua cor coincidentemente tão azul quanto a pena?

Mas, era o banheiro meu roteiro agora, não a percepção do meu universo doméstico inteiro. Não as lembranças da noite anterior. Não a discussão com Madalena. Não minha falta no trabalho. Não a pena azul que me interrogava seus motivos. Mas uma náusea não se desconsidera. A náusea lhe põe em alerta de jato. Ah! Meu reino por um antiácido! Pensei, ao correr para o banheiro.

Depois do vômito, dos suores, do rodopio da cabeça, do balançar do corpo, me vi supostamente resoluto a retornar para cama. Mas o resquício de impulso pela sobrevivência que me restava me aconselhou um banho antes do retorno aos suaves braços da morte sonífera. Seria bom ficar nu daquelas roupas amassadas; molhar o corpo para afastar a dormência; esfriar os neurônios ainda ferventes dos devaneios etílicos. Nunca minha própria nudez me atraiu tanto e a urgência da água foi tão premente de sorver.

Escorreguei ao interior do box numa procura tateante da torneira do chuveiro. Dei completa vazão ao jato frio que espalhava certo conforto molhado e alegre em meu corpo exausto pelos tropeços da noite anterior. O que um homem é capaz de fazer pelo motivo de um chute na bunda? Ridicularizar-se com o afogamento das mágoas em uma piscina de álcool envelhecido em barris de carvalho? Mas eu não queria pensar, o pensamento trazia o latejamento das têmporas e a consciência da minha completa babaquice romântica.

O roupão azul aqueceu do frio momentâneo, mas o certo alívio do mal-estar me era evidente. O retorno a cama foi lento e arrastado, como uma odisséia épica. Jamais tive tanta atração por uma cama, nem em minhas noites mais eróticas, regadas dos floreios decorativos da Madalena: incensos da Índia, velas coloridas, pétalas de rosas...aqueles ti-ti-tis femininos que elas julgam que os homens adoram. Adoram? – Ah! como doía a cabeça! – Acho que adoram, sim. Eu gostava, gostava de vê-la incensada de aromas naquele tremeluzir das luzes das velas.

Pronto! Já estava eu deixando o fantasma da Madalena me invadir de novo. Eu queria pensar em outra coisa. Dormir era o que eu queria, o sono dos redimidos. Ah! Como eu precisava de redenção! Quem sabe a pena azul tivesse a explicação. Lá estava ela ainda, misteriosa e leve, pousada em minha escrivaninha. Um sinal? Seria isso que ela anunciava? um sinal de uma vida nova, sem o cotidiano de um namoro longo? – Vamos lá cabeça, pare de pensar bobagens! Ah! mas aquela dor não passava! – A pena azul, impávida e muda, continuava lá, mas eu sabia que ela queria me dizer algo naquela manhã de ressaca.


Entre os devaneios filosóficos sobre o inesperado vôo da pena azul em meu quarto e os excessos de lembranças da desastrosa noite fatal com Madalena, adormeci novamente.

Sono desejado para ânsia da minha ressaca, mas nem de longe tranquilo e plácido como eu queria. Os sonhos povoaram o meu dormir naquelas horas seguintes. Imagens confusas maculavam aquela idéia de sono perfeito que antes embalara a minha vontade de dormir. Havia rios de águas azuis, árvores imensas com folhas de todos os tamanhos e tons do azul, pássaros de plumagens do claro ao escuro azul, pássaros lindos, cujos rostos traziam os traços da minha ex-namorada. Colibris, andorinhas, sabiás, periquitos...todos azuis...todos com riso, olhos, bocas e dentes de Madalena! Afinal, aquilo era sonho ou pesadelo? Eu corria em busca dos pássaros, mas não os alcançava, vezes voavam rápido demais, outras muito alto, outras em voltas e rodopios, deixando-me tonto, tonto, tonto...ao longe ouvi o som melódico de um piano tocando o Danúbio Azul...então, cansado, tomado de ânsia e delírio caí na grama azul de fios de plástico e, na minha visão de baixo para o horizonte azul acima de mim, vi o flutuar de algo pequeno e delicado a cair lentamente em minha direção. O pouso da pena acertara o ponto exato do meu peito, como um tiro indolor, sem sangue e tango, mas devastador para a solidão do meu onírico mundo azul. Então tudo foi se diluindo feito tinta óleo azul numa pintura que se desmancha.

Meus olhos se abriram no foco do meu relógio no criado-mudo ao lado da cama. A tarde já se ia alta pelas horas que indicavam os ponteiros. Havia calmaria nos meus neurônios, recompensados pelo correr do tempo longo de sono depois do banho. Pensei na loucura do sonho azul. Seria ele a chave para interpretação da pena? Certamente seria, pensei animado. Julguei representar o retorno da mulher amada, linda e bela como um pássaro exótico. Enfim, eu precisava apenas guardar aquela pena azul com cuidado e zelo, ela seria o sinal de que a minha Madalena voltaria para mim, repetindo as inúmeras reconciliações do nosso cotidiano amoroso.


Mas o sorriso morreu em mim quando me virei e não vi a pena azul pousada muda lá na minha escrivaninha. Onde estaria ela? Levantei da cama e me aproximei inquieto, disposto a procurar meu patuá azul. Mas lá estavam as chaves no lugar da pena. As chaves do meu apartamento que estavam com a Madalena ao lado de uma folha de papel azul em que ela escrevera o bilhete: Dante, liguei para o seu trabalho e me disseram que não apareceu por lá. Fiquei preocupada e apareci para ter certeza que estaria bem. Como estava dormindo, não quis te acordar. Foi melhor assim, nos evitou de outra conversa desagradável. Ontem, devido a nossa discussão, não pude concluir algo muito importante: eu conheci outra pessoa, não calculei que isso fosse ocorrer depois de tanto tempo com você, mas aconteceu. Eu sinto muito. A vida é assim mesmo, a gente as vezes precisa voar para outros horizontes. As chaves estão aí. Cuide-se. Seja feliz. Madalena. P.S. Dante, encontrei uma pequena pena azul em sua escrivaninha e tomei a liberdade de levá-la comigo, ela ficará linda num colar artesanal que estou fazendo.

Então eu fiquei ali, com aquele bilhete azul na mão. Quase indignado e totalmente patético. Impressionado com as razões da vida que, embora repleta e cheia do cotidiano mais banal e repetitivo, encontra o desvio inusitado para nos por à prova. Estava ali a razão da pena azul, ela fizera cumprir o seu vôo e desvio de percurso ao entrar pela janela do meu apartamento.




16 comentários:

Luisa disse...

Por recomendação do Guilherme, vim aqui pela primeira vez e gostei do que li. São diferentes as vossas escritas. A dele está talvez mais próxima do meu "português de Portugal". A sua é mais brasileira mas também perfeita. Fiquei a reflectir na pena azul. Deixá-la fugir quando temos a sorte de ela nos entrr pela janela, é um erro grave.

Claudinha ੴ disse...

Olá Genny! Sou leitora de Guilherme e vim por recomendação dele. Adorei seu conto. Eu sempre achei que as coisas queriam me dizer algo, fosse um besouro (guerreiro do mal) ou uma borboleta (emissária do bem) e coisas assim. Como Dante, eu ficaria intrigada e tentaria descobrir. O final também foi legal e a pena serviu para conduzir a trama, início e desfecho. Parabéns. Gostei muito!
Voltarei!
Beijo! Prazer em conhecer seu espaço!

Rosamaria disse...

Belo conto, Genny!

Cheguei aqui através do nepotismo explícito do Guilherme, de quem sou fã e gostei. Já estás no meu reader.

Bjim.

Luiz Reginaldo disse...

simplesmente de mais.
Volto em busca de tão belas palavras e sou supreendido.
Parabens e continue sempre assim com uma inumera legião de admiradores.

Manuel Veiga disse...

agradeço ao senhor seu irmão, privilégio de ter conhecido os tesouros de seu baú literário.

deliciosa a sua escrita! leve e encantadora. como pluma colorida.

gostei muito.

voltarei.sem dúvida.

SAM disse...

Heeeeeeeeeee genética boa! Gostei muito Genny...E passou pela minha cabeça a música A Rita do Chico Buarque ... Amei seu conto!


Um beijo.

Dalinha Catunda disse...

Olá, atendendo o convite de Guilherme passei aqui para conferir.
Realmente está na genética.
Parabéns pelo conto e pelo espaço de muito bom gosto.
Um abraço,
Dalinha

Unknown disse...

Bem esta família promete.
São todos artistas.
Venho mais tarde para ler melhor.
Agora o tempo não me permite.
Beijinho de uma amiga do seu mano.

Manuela

Rafeiro Perfumado disse...

Já tinha ouvido a desculpa do elefante cor-de-rosa para não ir trabalhar, a da pena azul foi a primeira vez. Mas o conto está deliciosamente bem escrito, parabéns.

São disse...

rrrsss Guilherme está perdoado pelo "nepotismo explícito": vim e me tornei seguidora!

Fique bem.

O Sibarita disse...

Ômopai! kkkkk Eita terra abençoada essa Bahia, né não fia? kkkkkkk

Essa pena azul, ai meu Deus! Que conto da zorra tá rebocado, piripicado! kkkkk

Embora eu já houvesse lido (nem sabe né? Tá bom! kkkk) algumas coisas suas, esse conto é surpreendente, maravilhoso, embora longo para postagem em blog, você consegue nos prender, nos envolver dentro do texto até o final, da-lhe baianinha!

Oi que bom! kkkkkkkkkkk

bjs
O Sibarita

f@ disse...

Olá Genny,

O mundo faz sempre giros á nossa volta… a p e n a s azuis quando os passos da luz são pa l a v r a s voando…
Sonhos que se guardam em baú e que se soltam em dias de sol para perfumar o ambiente do nosso coração… pena azul
Pena branca pena apenas…

Parabéns por este espaço tão belo… pelas palavras e talento…
Mais a criatividade e o B E L O….

Gostei mto
mto…

!nfinito beijinho

cristinasiqueira disse...

Oi Genny,

Vim de mansinho a convite do Guilherme e daí voei com a pena azul.

Beijos,

Cris

:.tossan® disse...

Vim ver o que escondes no bau e gostei do conto. Espero o próximo com ansiedade. Beijo

neide disse...

Olá Genny

Vim dá uma espiadazinha na sua casa... se é irmã daquele talento é talentosa também.. rsr
Venho outra hora com mais calma terminar a leitura. Li pouco mas gostei muito do que li.

Quero lhe desejar um final de semana abençoado.

Bjsss

Anônimo disse...

parabens pelo blog...
Na musica country VIRGINIA DE MAURO a LULLY de BETO CARRERO vem fazendo o maior sucesso com seu CD MUNDO ENCANTADO em homenagem ao Parque Temático em PENHA/SC. Asssistam no YOUTUBE sessão TRAPINHASTUBE, musicas como: CAVALEIRO DA VITÓRIA, MEU PADRINHO BETO CARRERO, ENTRE OUTRAS...
é o sonho eterno de BETO CARRERO e a mão de DEUS