quinta-feira, 5 de março de 2009

MACHADO, UM MUNDO QUE SE MOSTRA POR DENTRO



ARTIGO: Genny Xavier





MACHADO DE ASSIS,
O CONDUTOR DO PENSAMENTO MODERNO BRASILEIRO

Argumentação crítica do capítulo “O Papel das Idéias” do livro “Um Mestre na periferia do Capitalismo” de Roberto Schwarz


O capítulo “O Papel das Idéias” do livro “Um Mestre na periferia do Capitalismo”, do crítico Roberto Schwarz, questiona a profundidade da obra machadiana, especialmente nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, no que tange a profusão de teorias filosóficas e científicas presentes no discurso da obra. A ressonância dos estudos de Schwarz, nos dão conta da situação histórica-cultural da vida brasileira nos meados do século XIX, salientando a efervescência das “idéias novas” importadas da Europa neste período e absorvidas como uma espécie de modismo por intelectuais que, ao contrário de Machado, não se deram conta das contradições sociais, políticas e econômicas do país postuladas por uma sociedade oligárquica, patronal, provinciana, que, em quase nada, poderia medir-se pela visão ideológica européia.
Os pressupostos do cientificismo-filosófico europeu presentes em teorias como o Positivismo de Augusto Conte, o Evolucionismo de Darwin e o Determinismo de Taine, se insurgiram no imaginário de escritores do Realismo/ Naturalismo brasileiro, provocando, na visão de Schwarz, uma verdadeira “panacéia” ao espírito moderno da época em oposição à vida corrente da sociedade brasileira, ainda escravista e monárquica.
No que diz respeito a obra ficcional machadiana, em sua fase de maturidade, que marca o início do Realismo no Brasil, há de se ponderar que o escritor, soube expressar de forma contundente essas contradições, explorando-as em suas formas mais surpreendentes pela construção de um discurso implacável e irônico que aniquila os clichês e lugares-comuns vigentes em nossa sociedade. Neste sentido, Schwarz enfatiza: “Onde os deslumbrados enxergavam a redenção, ele (Machado) tomava recuo e anotava a existência de um problema específico. No contexto brasileiro, a leitura e propagação das novas luzes européias ocorria de modo particular, com ridículos também particulares.”
Na absorção desses postulados importados, Machado encontrou fórmulas novas para tratar as questões que ora se tornavam “essenciais” às novas gerações. Pelo discurso da ironia que trazia à superfície um humor cético e um pessimismo desconcertante, o ficcionista das Memórias, escrevia para um público que precisava aprender a “tirar a trave do olho” e a desvestir-se de hábitos e valores provincianos. Para o ficcionista, o Brasil dos anos 80 do século XIX aspirava maturidade, frente ao atraso vigente. O escritor que criou as Memórias Póstumas e o público para o qual ele as escreveu se constituía a imagem viva do Segundo Reinado que se aproximava do fim. No Brasil desse período via-se analfabetismo e atraso, portanto e obviamente, o leitor de Machado se constituía de uma elite da sociedade carioca, a quem Brás Cubas, narrador notadamente malcriado, condena gostos e práticas de leitura, duro e cético diante da mesquinhez pouco exigente desses leitores. Tratava-se da classe hegemônica da sociedade brasileira, uma parcela culturalmente alienada, dividida entre uma face conservadora e outra menos, entre os valores do velho patriarcalismo rural e os da burguesia urbana que tentava parecer brilhante diante das “novas idéias” importadas da Europa. Nesta direção de análise nos salienta Schwarz: “O progressismo alvar não seria uma exclusividade brasileira, nem a nota dominante daqueles anos. Contudo, associado ao atraso ambiente, ele adquire feição patética e um quê localista.(...) Machado duvidava do aggiornamento repentino por obra da ciência, e tampouco acreditava na independência intelectual súbita.”
Em suas Memórias Póstumas, o ficcionista postula uma série de teorias que ora traçam um perfil da alma humana e suas veleidades pelo viés da psicanálise, ora expõem análises sobre a ética na conduta dos homens em sociedade, ora apontam doutrinas filosóficas, ideologias, referências históricas e artísticas, tudo isso em meio a um discurso revestido de certo tédio, muito ceticismo, ironia, sarcasmo e que nos pontua uma quase sátira perversa sobre as “máscaras” que as idéias escondem.
Ao leitor perspicaz das Memórias não escapa a sensação de que este “zomba” dos rigores do paradigma científico-filosófico que preponderaram na sociedade brasileira provinciana da época. Contrariando o espírito objetivista e impessoal que em si já se mostrava como referência do cânone das produções literárias vigentes, atreladas aos ditames da ciência, Machado mostrou-se veladamente iconoclasta e insubordinado, preferindo escarnecer, provocar e revolver conceitos, valores, ideologias, filosofias, etc. Experimentamos os sabores dessas considerações ao passo que Brás, o narrador irônico das Memórias se dirige ao leitor: “Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio.” Ou quando este nos fala sobre seu óbito: “E foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pousado e trôpego, como quem se retira do espetáculo. Tarde e aborrecido.” Assim, o narrador aproxima as circunstâncias a que seu texto faz referência: sua própria morte, em relação a outra circunstância já tomada pela literatura: o monólogo em que a personagem Hamlet, da peça homônima de Shakespeare, fala da morte como “esse eterno país misterioso, donde um viajor sequer há regressado” Ou ainda, quando nos diz sobre sua morte: “Juro-lhes que essa orquestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-se no peito, com uns ímpetos de vaga marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o corpo fazia-se planta, e pedra, e lodo, e coisa nenhuma.” Neste trecho, sugere-se uma consumação dos pressupostos do Materialismo, aquele que caracteriza a morte do corpo como a morte de tudo, mas que mistério subjetivo ou galhofa satírica nos trouxe Machado à tona um Brás defunto, a falar e a passar à limpo suas Memórias? Brás havia ou não regressado dessa “região desconhecida” que nos alude Hamlet? Ou queria apenas o ficcionista sombrear com a pena do seu discurso irônico as rupturas da dialética materialista na cabeça do homem brasileiro de seu tempo? Enfim, transposta as considerações levantadas nestes comentários aqui presentes nesta argumentação, Schwarz comenta num dado momento do seu texto crítico: “O capricho atrela a seus movimentos a filosofia, a ciência e as demais formas de superioridade intelectual que em conseqüência sofrem uma desqualificação liminar, com efeito satírico, pois o certo seria o contrário.(...) As reservas da tradição filosófica moderna em face da mônada individual reagrupam-se em função das peculiaridades históricas da experiência brasileira, onde a valorização absoluta do indivíduo não podia mesmo encontrar credibilidade.”
A visão introspectiva do homem em sociedade e a construção das “máscaras sociais” certificam a curiosa filosofia do narrador das Memórias quando, no capítulo XLIX, intitulado “A ponta do Nariz”, este salienta: “Cada homem tem necessidade e poder de contemplar o seu próprio nariz, para o fim de ver a luz celeste, e tal contemplação, cujo efeito é a subordinação do universo a um nariz somente, constitui o equilíbrio das sociedades. Se os narizes se contemplassem exclusivamente uns aos outros, o gênero humano não chegaria a durar dois séculos: extinguia-se com as primeiras tribos.” A ironia que se encerra na filosofia exposta por Brás caracteriza um modo próprio de “contemplar” o mundo e, provoca no leitor o impulso por contemplar o seu próprio mundo, como protagonista ou como figurante do jogo social, aquele que atesta o equilíbrio das sociedades que constroem seus comandos e seus comandados. Sobre esses questionamentos, Schwarz comenta: “Vejamos inicialmente a filosofia dita da ponta do nariz. Enquanto fixa a vista no seu próprio, o que é um modo de olhar para fora e para dentro ao mesmo tempo, o indivíduo recompõe o mundo de maneira a se desforrar de reveses sofridos e a desamassar a vaidade machucada pela superioridade dos outros. (...) Assim, a reparação imaginário torna toleráveis as desigualdades da vida.”
Machado recolhe de si a mordacidade satírica das colocações de Brás, assim, na fidelidade de seus propósitos por revolver as máscaras humanas integradas ao campo social, o romancista traz para as Memórias todo ambiente da sociedade urbana brasileira, miniaturizada nos salões e grupos humanos do Segundo Império e dos primeiros anos da República. Recria o universo de uma sociedade arcaica, cujos hábitos e atitudes convencionais dissimulavam a violência de uma sociedade escravocrata, onde o apadrinhamento soluciona as situações geradas por uma estrutura social ancorada nos privilégios e numa desigual divisão das riquezas e dos bens. Assim nos mostra Schwarz, quando comenta: Digamos que o recurso à ponta do nariz e ao embotamento do sentido moral que ela faculta designam o processo espiritual próprio à nossa elite escravista-moderna: a equidade burguesa, (...)”
Mas, é sem dúvida nenhuma que, do ponto de vista das idéias, temos no “Humanitismo” do filósofo Quincas Borba a mais conhecida das filosofias Machadianas. Ao longo de toda as Memórias, especialmente no capítulo CXVII, o escritor esboça os pressupostos da sua idéia sobre o Humanitismo e sobre a condição do Humanitas: “Para entender bem o meu sistema, concluiu ele, importa não esquecer nunca o princípio universal, repartido e resumido em cada homem. Olha: a guerra, que parece uma calamidade, é uma operação conveniente, com se disséssemos o estalar de dedos de Humanitas; a fome é uma prova a que Humanitas submete a própria víscera”. Fica patente que em toda exposição sobre a filosofia em questão - desenvolvida neste capítulo citado e em outros capítulos do romance, bem como em alguns do romance “Quincas Borba” - críticos e estudiosos da obra machadiana lançaram mão de diferentes interpretações para explica-la salvo que, tal compreensão é fundamental para o entendimento das idéias do escritor. O Humanitismo tem sido entendido de diversas formas: como explicação do pessimismo machadiano; como crítica irônica às tendências científicas, especialmente do Evolucionismo darwiniano, amalgamado na teoria da “Seleção natural das espécies”; como sátira das explicações metafísicas do homem; como resposta a uma linha filosófica cética, dura, que expõe de forma pessimista o comportamento humano e o que ele é capaz de fazer para garantir sua sobrevivência em sociedade. Sobre essas ponderações a cerca da teoria do filósofo e amigo de Brás, Schwarz comenta: “Como sugere o nome (Humanitismo), trata-se de uma sátira à floração oitocentistas de ismos, com alusão explícita à religião contiana da humanidade. Os raciocínios fazem pensar em mais outras filiações já que em lugar dos princípios positivistas afirmam a luta de todos contra todos, à maneira do darwinismo social”.
Enfim, percebemos que, ao sentido das idéias, sua discussão filosófica ou metafísica, sua adequação aos moldes da sociedade brasileira, o escritor Machado de Assis nos conduz para o pensamento moderno atentado para questões imprescindíveis: aquelas que nos dão a certeza de que, dentro das máscaras que compõem as sociedades humanas, em especial a contraditória sociedade dos anos 80 do século XIX, o homem subverte as idéias, para que estas, possam prescindir suas vontades, seus anseios, seus comandos e comandados. A este pensamento, Schwarz conclui: “Nas Memórias entretanto assistimos (...) à sujeição metódica das mais variadas formas do pensamento moderno aos acaso das vontades do narrador e de seus parceiros”.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ASSIS, Machado de. “Memórias póstumas de Brás Cubas” .São Paulo: FTD, 1998.

SCHWARZ, Roberto. “Um mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis”. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

Um comentário:

Anônimo disse...

Il semble que vous soyez un expert dans ce domaine, vos remarques sont tres interessantes, merci.

- Daniel