A HORA DO SOL
Genny Xavier
Genny Xavier
“(...) o sol ensinou-me que a história não é tudo”.
Albert Camus.
O suor lhe escorria pelas costas, pela testa, pelas pernas. Podia sentir aquele cheiro amargo e irritante. Odiava aqueles dias de calor, aquele sol brilhante que o fazia fechar os olhos. Sempre fazendo careta. Nascera por engano ali, sentia-se estranho naquele mundo tropical, não combinava. Era sóbrio, gostava dos dias nublados, da chuva, do frio, parecia obsessão. Não combinava, nem mesmo ficava admirado com a exuberância colorida das mulheres, as formas generosas, morenas, bronzeadas de brilho e sol. Preferia as magras, pálidas, quietas e enigmáticas, como exemplares únicos, intrigantes.
Uma onda de mal-estar o invadia naquela manhã, o cotidiano engolindo-o completamente; o calor, aquele calor maldito lhe dava uma agonia de réu.
Entrou num bar, queria café. Empanturrava-se de café durante o dia, não que gostasse tanto assim, mas tomava assim mesmo. Era desta forma as vezes, paradoxal, contraditório. O café tinha aquela droga, cafeína, que o deixava inquieto, questionando tudo à sua volta. Sempre aquela estranheza, aquilo o perseguindo constantemente. Sim, era um homem estranho, mal nascido, desencontrado, um professor estranho, segundo os comentários dos seus alunos. Filosofia pura, respirava filosofia, convivia com gênios e um único ídolo: Jean Paul Sartre. Nunca mais pudera ser o mesmo depois de ter lido Sartre, impregnou-se dele, identificava-se com ele. Era um frio, um calculista, calculava tudo, tudo o que via, as mínimas emoções que sentia, até o beijo de Lorena. Sim, ele a beijava de olhos abertos, gostava de analisar suas reações, suas intenções, mergulhava naqueles olhos pastosos, de gata siamesa, densos e apaixonados. Estranhava o termo apaixonado, desde adolescente decidira ser bobagem apaixonar-se. Um dia, no colégio de internato, vira um jovem, o companheiro de quarto, cortar os pulsos por amor, sentira vontade de vomitar. E hoje, as vezes, sofria o mesmo desconforto quando tinha uma mulher nos braços. Era esquisito, mas os cheiros que emanavam das relações sexuais que vivia, fazia-o sentir o cheiro de sangue, o sangue do amigo que morrera por amor. Não conseguia suportar, corria ao banheiro para vomitar. Nunca se apaixonara, achava ridículo perder-se na loucura do amor, um crime patético que levava a morte e a destruição. É claro que sentia emoções físicas, mas todas elas dirigidas, muito frias.
Lorena aceitava seu jeito, isso ele gostava nela. Nunca fazia perguntas, apenas ficava olhando-o, parada, sem dizer nada, estudando, tentando descobrir o avesso daquele homem sóbrio. Era jovem e analisava sua estranha maturidade de professor, de homem aos 40 anos.
Entrou num bar lentamente. Era sempre lento.
- Um café, faz favor.
- Pingado ou preto?
Que adiantava aquele leite aguado?
- Preto, só preto.
Bebeu sem saborear. Pagou o preço do dia, tudo aumentava tão rápido nos últimos tempos! A política sempre por trás de tudo, a política econômica.
Saiu. O calor aumentava. Tinha aula as oito na Faculdade. Hoje estudaria Sartre. Aula para Lorena e uma cambada de jovens perdidos, indomáveis. Simplesmente ideológicos ou ignorantes. Será que fora jovem um dia?
Correu. Sempre lento. Alcançou o ônibus que já se ia. Não tinha carro, não se importava com isso, queria ser livre, não ter compromisso, só com o tempo se arrastando.
*******
Depois da aula, encontrou o reitor pelos corredores; os olhos de raposa o olharam indiferentes, a boca abriu-se num sorriso sem riso algum. Uma hierarquia os separava. Teve vontade de dizer-lhe algo que o pisasse, que o esmagasse em sua mediocridade, tinha argumentos de sobra para realizar aquela perversão, mas que adiantava? Iria continuar medíocre, capitalista e alienado, e ele um professor de filosofia, um excêntrico, um estranho. Por que havia pensado em capitalismo? Não defendia nenhuma luta, nem partidos. Achava racional repudiar aquilo. Sim, como também achava racional repudiar o comunismo, que já nem mais existia, dava ao mesmo. Não era nada, não queria ser nada, só sabia disso.
Cruzou com muitos jovens. Avistou Lorena. Chegava até ele sem nenhuma timidez, olhos cinzas, sempre fundos, atentos, sem aquela angústia costumeira dos jovens, branca, quase transparente.
- Oi, quer me ver hoje? Vou à sua casa?
Era uma fala mansa, sem espalhafatos.
- Só sei o que quero na hora. Agora ainda é manhã...E faz sol.
- Sempre filósofo. Você não muda, é sempre constante.
- Tenho 40 anos.
- É, acho que você sempre teve 40 anos.
- Pensei nisso hoje. Recordei de que nunca fui jovem.
Segura os braços dele. Olhos pastosos e íntimos.
- Você...Eu amo você. Queria te beijar aqui.
- Você é mesmo jovem...Gosta de beijar em público.
- Você não?
- Eu não ligo. Tudo é circunstancial.
- Já vou. De noite vou sentir vontade de ir à sua casa.
Lorena saiu exibindo um meio sorriso. Ele ficou sozinho, o pensamento vazio, a cabeça oca. Ela iria se cansar dele mais cedo ou mais tarde, logo. Aquele amor não podia durar, era puramente ocasional. Pena, Lorena era ótima, não falava muito.
Andou até a cantina.
- Um café, faz favor.
- Preto ou pingado?
O leite era o mesmo, aguado.
- Preto, só preto.
Era rotina, aquilo era puro cotidiano. Aquela hora arrastada era rotina; o café, Lorena, a filosofia, seu calculismo, sua estranheza, aquele mundo exuberante, tudo rotina. Como o ciclo dos dias, das noites, da vida. Sim, o mundo era um grande gigante cotidiano. Até os loucos, os poetas, os revolucionários, continuavam repetindo tudo. As mesmas loucuras, as mesmas poesias, as revoluções iguais, isso há séculos.
*******
O meio-dia engolia a manhã. Procurou um lugar pra comer. O céu tomava a praça e envolvia tudo com seu azul. Sentiu-se invadido, completamente invadido, sem proteção alguma. Teve medo, aquilo era raro de acontecer, era uma ameaça. Um princípio de tempestade dentro dele, diante de toda uma vida de calmaria.
Sentiu-se um homem comum naquele instante, um homem nu, amarrado. Mas passaria, aquilo passaria logo. Bastava a noite, aquele rastro de boêmios, de perdidos, bastava-lhe aquilo para encontrar a razão.
Notou que estava parado no meio da rua. Um carro buzinava, parecia olhar pra ele com raiva, culpando-o de todos os crimes. Não sentiu dor, apenas percebeu que morria como qualquer um, de forma medíocre, sem qualquer especialidade. Apenas naquele instante percebeu que era igual a qualquer homem. Então, o mundo lhe pesou nas costas.
TEIXEIRA NETO, Euclides José. Antologia de Novos Contos da Região Cacaueira. A Hora do Sol – Genny Xavier. Brasília(DF)/ Itabuna(Ba): Horizonte Editora Ltda. / PACCE, 1992. p. 131
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