“Eu sou aquele, que os passados anos
cantei na minha lira maldizente
torpezas do Brasil, vícios, e enganos.
E bem que os decantei bastantemente,
canto segunda vez na mesma lira
O mesmo assunto em plectro diferente.
(...)
De que pode servir calar, quem cala
Nunca se há de falar, o que se sente?
Sempre se há de sentir, o que se fala!
Qual homem pode haver tão paciente,
Que vendo o triste estado da Bahia,
Não chore, não suspire e não lamente?”
Gregório de Matos
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ARTIGO: Genny Xavier
O BOCA DO INFERNO: A VISÃO GROTESCA DO MUNDO
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.
Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um rebuliço de ancas.
Quem diz outra coisa é besta.”
Gregório de Matos
Falar de Gregório de Matos, nos remete ao tempo das controvérsias entre religiões e humanidades, palavras e idéias, antíteses e paradoxos; gongorismos, marinismos, eufuísmos: Barroco; a Estilo e a Arte em que o conflito se instalou.
O Barroco surgiu na Europa em meio a uma profunda transformação cultural pós-Renascença. Chegou a Portugal em finais do século XVI, marcado, a princípio, por uma influência da poética camoniana para, em seguida, esboçar sua própria identidade, a partir das contribuições da vizinha Espanha.
Também reconhecida como a Arte da Contra-Reforma, o Barroco, segundo análise do crítico Massaud Moisés, entre conflitos e caos instalados, propõe a fusão de propósitos e tendências nem sempre coerentes. Nesta linha de choques, de ressonâncias ideológicas e de posturas filosóficas, o Cristianismo católico, abalado pela dissidência luterana, utilizou-se da Arte Barroca para reafirmar sua missão evangelizadora através da Companhia de Jesus (Concílio de Trento). Assim, a estilística barroca, apresenta aspectos em que se conciliam o espírito medieval teocêntrico com o espírito clássico renascentista, pagão, terreno e antropocêntrico.
Produto das tensões entre fatores conflitantes e desagregadores, o Barroco é uma síntese da dualidade, uma valorização da análise pelo conhecimento da essência que enaltece a oposição entre caos plástico (descrição cultista gongórica) onde poesia, palavra e prazer lúdico se confundem, e o racionalismo, que propõe a lógica discursiva, com predominância da prosa e do estabelecimento de idéias e silogismos em torno da vida e das coisas (conceptismo). Entretanto, tais tendências, embora díspares, se relacionam perfeitamente na atmosfera barroca.
No Brasil, a fala barroca nasce com as primeiras vozes jesuíticas, penetra o século XVII e o início do século XVIII; manifestado pela poesia ufanista dos jesuítas, pela poesia crioula de Gregório de Matos, pela oratória de Vieira e seus descendentes e pela prosa das academias.
Nas letras, é importante a contribuição do jesuítas no Brasil Colonial, tal contribuição é uma típica manifestação barroca, evidenciada pela temática, ideologia e estrutura. Marcada por uma literatura de missão, de desvelamento do serviço religioso e pedagógico, de conservação e catequese, onde se procurou infundir no espírito humano uma visão pessimista da vida terrena, pelo enaltecimento da vida celestial. O medo impera, o temor desesperado pelos prazeres mundanos, que vai reforçando a visão dos infernos e do poder demolidor do pecado, para impedir que se conduzissem pelos caminhos da vaidade. Neste pressuposto, entre conflitos, dores e prazeres, o Barroco conquista o homem pelos sentidos e não pela razão, daí o uso de artifícios que intimidavam e impressionavam os sentidos como as detalhistas arquitetura e escultura, ou o contrito teatro, ou a complexa e hiperbólica literatura.
Em termos históricos, o Brasil Barroco, vivia a hegemonia do açúcar, como fonte de maior renda, concentrando-se principalmente em áreas como Pernambuco e Bahia. Neste espírito de exploração colonial das nossas riquezas, reinava a ganância. Todos desejavam retirar da terra tudo aquilo que fosse possível para, na Metrópole, converter em dinheiro e poder, prestígio e autonomia. Em meio a este quadro sócio-cultural, publicou-se em Pernambuco o poema “Prosopopéia” (1601) de Bento Teixeira, estudado como marco inicial do Barroco brasileiro. Na Bahia, filia-se ao Barroco a surpreendente poética de Gregório de Matos, a voz que irrompe muros e professa estrondorosamente as mazelas do seu tempo; voz que entre a rudeza, o terror e o grotesco, constrói estruturalmente, pré-requisitos barrocos, mas que em sua temática, coloca os olhos adiante do tempo e comprova que o homem, independente da sua época, delimita o seu universo e escolhe a sua postura, seja de irreverências ou apatias.
O Barroco, estimulou a imaginação dos poetas do seu tempo, imprimindo em sua linguagem um campo vastíssimo de figuras de estilo, de metáforas que oscilavam entre a audácia e a extravagância. Gregório de Matos, poeta incidente de uma linguagem rude e incomun; terna e questionadora, soube, pela originalidade ou pela cópia, criar e recriar um rico universo matafórico: espumas (lágrimas de neve); cabelos negros (pélagos de azeviche); mar (vidraças de anil).
Gregório viveu sob o signo da controvérsia, provocando avaliações das mais contraditórias já escritas em torno de um autor brasileiro. Sua obra é um mundo complexo, provocadora de sustos, espantos e desconsertos, constituindo uma radiografia incomoda e explícita da vida social e política do Brasil-Colônia.
Ao longo da sua tumultuosa trajetória como poeta, as mudanças na sua visão da sociedade foram correspondendo a um processo dinamizador, a partir de uma linguagem que foi se adaptando as novas expressões poéticas e abandonando convenções, rumo ao uso coloquial da língua em que este enriqueceria e individualizaria a sua obra.
Por analogia, o termo Barroco, poderia ser interpretado como um pensamento enviesado ou equívoco, forma excêntrica de ver e exprimir o mundo. Gregório foi, sem dúvida, um grande representante desta feição multifacetada - moralizadora e renovadora - do Barroco, que se embutia na visão da sociedade que, ao mesmo tempo, o coibia e o impulsionava.
Gregório de Matos foi o senhor das antíteses. Marcado pelo desespero de um mundo repartido em duas vertentes, pela disparidade ideológica do homem, atônito diante dos caminhos e dos descaminhos do Barroco de Deus e dos homens, do céu e da terra, foi a dura fala que repartiu-se em muitas, na controvérsia de uma poética vingativa, burlesca, questionadora e forte: “(...) Todos somos ruins, todos perversos/ Só nos distingue o vício, e a virtude,/ De que uns são comensais, outros adversos.(...)” (Matos,Gregório de. p 155).
Poeta dos vencidos pela compaixão cristianizada; poeta dos condoídos e medrosos do pecado; poeta da lírica fantasiosa dos amores carnais; poeta do olho das ruas, das esquinas e das praças; poeta da boca ferina, da burla, do riso e do escárnio; poeta da voz profunda que o inferno imortalizou: “Eu sou aquele, que os passados anos/ Cantei na minha lira maldizente/ Torpezes do Brasil, vícios, e enganos.” (Matos, Gregório de. p 153).
Quando analisamos o universo da poesia de Gregório diante do grotesco, nos deparamos com requisitos essenciais que giram sucessivamente em torno do humor, da zombaria, do desdém, do escárnio, do ridículo. Tais aspectos são facilmente detectados na linha satírica do poeta: “Basta que se escandaliza/ do meu cu porque se caga?/ Venha cá, boca de praga,/ que cousa mais mortaliza?/ O peido que penaliza/ é sorrateiro e calado:/ o peido há de ser falado/ ou ao menos estrondoso,/ porque aquele que é fanhoso/ é peido desconsolado.” (Gomes, João Carlos Teixeira. p. 368). Especialmente salientado pelo crítico brasileiro Pereira da Silva que, segundo João Carlos T. Gomes, insere o poeta ao Realismo Grotesco, enquanto catalisador de uma herança medieval caracterizado na fonte das cantigas de escárnio e maldizer, sua poética expressionista, de caráter aparentemente rebaixador, nos faz deparar com um grotesco universo, derivativo de uma época em que as palavras estavam longe de possuir uma abertura conceitual. A nota a seguir, esclarece estes aspectos que permeiam o tema em questão: “No realismo grotesco o rebaixamento do sublime não encerra de modo algum um caráter formal ou relativo. O “alto” e o “baixo”adquirem uma significação absoluta e rigorosamente topográfica. O alto é o céu; o baixo é a terra; a terra é o princípio da absorção (o túmulo, o ventre), (...). Sob o seu aspecto mais propriamente corporal, que não representa precisamente nenhuma parte separada do aspecto cósmico, o alto é a face (a cabeça); o baixo, os órgãos genitais, o ventre e o traseiro. É com estas significações precisas que funciona o realismo grotesco, incluindo a paródia medieval.” (Gomes, João Carlos Teixeira. p. 361).
Diante da explícita expressão do grotesco na obra satírica do poeta, seria possível identificarmos também resquícios desta visão em outras linhas poéticas do autor? Acaso teria o poeta, endurecido pela vida e pelos conflitos existenciais, imprimido em sua lírica seja religiosa ou amorosa, o sombreado rude e cético do seu paradigma literário burlesco? Para o leitor atento, a incongruência afiada, angustiosa e quase perversa também se exprime quando o poeta se volta para a sua leitura do sublime ou da sublimação. Este é o mesmo o poeta que, aparentemente, se suaviza diante da impiedosa condenação de um Deus moralizador, mas se veste de uma suavidade aterradora, que arrebata e machuca: “Como na cova tenebrosa, e escura,/ A quem abriu o Original pecado,/ Se o próprio Deus a mão vos tinha dado;/ Podíeis vós cair, ó virgem pura?(...)” (Matos, Gregório de. p 145); ou ainda: “Que és terra Homem, e em terra hás de tornar-te,/ Te lembra hoje Deus por sua Igreja,/ De pó te faz espelho, em que se veja/ A vil matéria, de que quis formar-te.// Lembra-te Deus, que és pó para humilhar-te,/ E como o teu baixel sempre fraqueja/ Nos mares da vaidade, onde peleja,/ Te põe à vista a terra, onde salvar-te.(...)” (Matos, Gregório de. p 146). Como se vê, esta expressão aparentemente suave e ao mesmo tempo rude e densa no religioso gregoriano, se manifesta na dor, no medo do pecado, na visão da morte fria, da desintegração da carne em pó e no confronto final entre as vaidades humanas e a salvação diante da morte.
Gregório é também existencialmente marcado por uma amorosidade concreta, erótica e desconfortavelmente direta para a sua época, que agride e escandaliza, utilizando-se, inclusive, de um prazer perverso de registrar palavrões, expressões chulas e vocabulário intencionalmente usado para chocar homens e mulheres do seu tempo: “Fodamo-nos ,minha vida,/ que estes são os meus intentos/ e deixemos cumprimentos/ que arto tendes de comprida:/ eu sou de vossa medida/ e com proporção tão pouca/ se este membro vos emboca,/ creio que ambos nos fica/ por baixo, crica com crica,/ por cima, boca com boca.” (Gomes, João Carlos Teixeira. p. 369).
Se a vida não lhe foi fácil, a poesia lhe causou tais transtornos. Imortalizou sua dura visão de mundo em poemas que representam verdadeiras armas contra o estabelecido da sua época. Construiu uma poética de função política, ativadora de choque e confronto diante das instituições vigentes, lançando golpes sucessivos de sarcasmos e ironias: “(...) A ignorância dos homens destas eras/ Sisudos faz ser uns, outros prudentes,/ Que a mudez canoniza bestas feras.// Há bons, por não ser insolentes,/ Outros há comedidos de medrosos,/ Não mordem outros não, por não ter dentes.// (...) Todos somos ruins, todos perversos,/ Só nos distingue o vício, e a virtude,/ De que uns são comensais, outros adversos(...).” (Matos, Gregório. p. 155).
Gregório de Matos foi um dos mais importantes exemplos do poeta brasileiro que se enriqueceu na herança do passado - burlesco medieval - e se instalou no presente do seu momento histórico conflituoso. Por fim, vislumbrou um tempo à sua frente mediante a audácia. Foi ele, na verdade, um poeta engajado e diga-se o que disser, tomou a defesa do povo, sendo fiel a sua visão particular da vida. Foi um grande cronista, sobretudo, ao retratar o Brasil dos colonizadores e dos exploradores, numa espécie de manifesto poético urbano de zomba e ironia, afrontando com sua desesperada angustia religiosa, com seu descaramento erótico ou com sua gargalhada sardônica uma sociedade perplexa, escondida hipocritamente no moralismo do seu tempo. Esta voz, imortal posto que é chama, ainda vibra em permanente poder diante de um Brasil contemporâneo que ainda abriga seus poderosos e dominadores, que ainda enfatiza suas múltiplas disparidades ao óbvio rigor das dualidades entre o social e o econômico, entre o imoral e a inocência.
FONTES BIBLIOGRÁFICAS
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 1968.
DIMAS, Antônio. Seleção de textos, notas, estudos biográficos, histórico e crítico (Literatura Comentada). São Paulo, Editora Abril Educação, 1981.
GOMES, João Carlos Teixeira. Gregório de Matos, O Boca de Brasa - Um Estudo de Plágio e Criação Intertextual. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1985.
MATOS, Gregório de. Poesia Selecionadas - Gregório de Matos.São Paulo, Editora FTD, 1993.
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 12º edição. São Paulo, Cultrix, 1974.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. Vol 1, 2º edição. São Paulo, Cultrix, 1985.
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil. 13º edição. São Paulo, Vozes, 1991.
WISNIK, José Miguel. Poemas Escolhidos - Gregório de Matos. São Paulo, Cultrix, 1989.
Obras Completas de Gregório de Matos. IV Vol. Edição Universitária. Rio de Janeiro, Editora Janaína LTDA.
O Barroco surgiu na Europa em meio a uma profunda transformação cultural pós-Renascença. Chegou a Portugal em finais do século XVI, marcado, a princípio, por uma influência da poética camoniana para, em seguida, esboçar sua própria identidade, a partir das contribuições da vizinha Espanha.
Também reconhecida como a Arte da Contra-Reforma, o Barroco, segundo análise do crítico Massaud Moisés, entre conflitos e caos instalados, propõe a fusão de propósitos e tendências nem sempre coerentes. Nesta linha de choques, de ressonâncias ideológicas e de posturas filosóficas, o Cristianismo católico, abalado pela dissidência luterana, utilizou-se da Arte Barroca para reafirmar sua missão evangelizadora através da Companhia de Jesus (Concílio de Trento). Assim, a estilística barroca, apresenta aspectos em que se conciliam o espírito medieval teocêntrico com o espírito clássico renascentista, pagão, terreno e antropocêntrico.
Produto das tensões entre fatores conflitantes e desagregadores, o Barroco é uma síntese da dualidade, uma valorização da análise pelo conhecimento da essência que enaltece a oposição entre caos plástico (descrição cultista gongórica) onde poesia, palavra e prazer lúdico se confundem, e o racionalismo, que propõe a lógica discursiva, com predominância da prosa e do estabelecimento de idéias e silogismos em torno da vida e das coisas (conceptismo). Entretanto, tais tendências, embora díspares, se relacionam perfeitamente na atmosfera barroca.
No Brasil, a fala barroca nasce com as primeiras vozes jesuíticas, penetra o século XVII e o início do século XVIII; manifestado pela poesia ufanista dos jesuítas, pela poesia crioula de Gregório de Matos, pela oratória de Vieira e seus descendentes e pela prosa das academias.
Nas letras, é importante a contribuição do jesuítas no Brasil Colonial, tal contribuição é uma típica manifestação barroca, evidenciada pela temática, ideologia e estrutura. Marcada por uma literatura de missão, de desvelamento do serviço religioso e pedagógico, de conservação e catequese, onde se procurou infundir no espírito humano uma visão pessimista da vida terrena, pelo enaltecimento da vida celestial. O medo impera, o temor desesperado pelos prazeres mundanos, que vai reforçando a visão dos infernos e do poder demolidor do pecado, para impedir que se conduzissem pelos caminhos da vaidade. Neste pressuposto, entre conflitos, dores e prazeres, o Barroco conquista o homem pelos sentidos e não pela razão, daí o uso de artifícios que intimidavam e impressionavam os sentidos como as detalhistas arquitetura e escultura, ou o contrito teatro, ou a complexa e hiperbólica literatura.
Em termos históricos, o Brasil Barroco, vivia a hegemonia do açúcar, como fonte de maior renda, concentrando-se principalmente em áreas como Pernambuco e Bahia. Neste espírito de exploração colonial das nossas riquezas, reinava a ganância. Todos desejavam retirar da terra tudo aquilo que fosse possível para, na Metrópole, converter em dinheiro e poder, prestígio e autonomia. Em meio a este quadro sócio-cultural, publicou-se em Pernambuco o poema “Prosopopéia” (1601) de Bento Teixeira, estudado como marco inicial do Barroco brasileiro. Na Bahia, filia-se ao Barroco a surpreendente poética de Gregório de Matos, a voz que irrompe muros e professa estrondorosamente as mazelas do seu tempo; voz que entre a rudeza, o terror e o grotesco, constrói estruturalmente, pré-requisitos barrocos, mas que em sua temática, coloca os olhos adiante do tempo e comprova que o homem, independente da sua época, delimita o seu universo e escolhe a sua postura, seja de irreverências ou apatias.
O Barroco, estimulou a imaginação dos poetas do seu tempo, imprimindo em sua linguagem um campo vastíssimo de figuras de estilo, de metáforas que oscilavam entre a audácia e a extravagância. Gregório de Matos, poeta incidente de uma linguagem rude e incomun; terna e questionadora, soube, pela originalidade ou pela cópia, criar e recriar um rico universo matafórico: espumas (lágrimas de neve); cabelos negros (pélagos de azeviche); mar (vidraças de anil).
Gregório viveu sob o signo da controvérsia, provocando avaliações das mais contraditórias já escritas em torno de um autor brasileiro. Sua obra é um mundo complexo, provocadora de sustos, espantos e desconsertos, constituindo uma radiografia incomoda e explícita da vida social e política do Brasil-Colônia.
Ao longo da sua tumultuosa trajetória como poeta, as mudanças na sua visão da sociedade foram correspondendo a um processo dinamizador, a partir de uma linguagem que foi se adaptando as novas expressões poéticas e abandonando convenções, rumo ao uso coloquial da língua em que este enriqueceria e individualizaria a sua obra.
Por analogia, o termo Barroco, poderia ser interpretado como um pensamento enviesado ou equívoco, forma excêntrica de ver e exprimir o mundo. Gregório foi, sem dúvida, um grande representante desta feição multifacetada - moralizadora e renovadora - do Barroco, que se embutia na visão da sociedade que, ao mesmo tempo, o coibia e o impulsionava.
Gregório de Matos foi o senhor das antíteses. Marcado pelo desespero de um mundo repartido em duas vertentes, pela disparidade ideológica do homem, atônito diante dos caminhos e dos descaminhos do Barroco de Deus e dos homens, do céu e da terra, foi a dura fala que repartiu-se em muitas, na controvérsia de uma poética vingativa, burlesca, questionadora e forte: “(...) Todos somos ruins, todos perversos/ Só nos distingue o vício, e a virtude,/ De que uns são comensais, outros adversos.(...)” (Matos,Gregório de. p 155).
Poeta dos vencidos pela compaixão cristianizada; poeta dos condoídos e medrosos do pecado; poeta da lírica fantasiosa dos amores carnais; poeta do olho das ruas, das esquinas e das praças; poeta da boca ferina, da burla, do riso e do escárnio; poeta da voz profunda que o inferno imortalizou: “Eu sou aquele, que os passados anos/ Cantei na minha lira maldizente/ Torpezes do Brasil, vícios, e enganos.” (Matos, Gregório de. p 153).
Quando analisamos o universo da poesia de Gregório diante do grotesco, nos deparamos com requisitos essenciais que giram sucessivamente em torno do humor, da zombaria, do desdém, do escárnio, do ridículo. Tais aspectos são facilmente detectados na linha satírica do poeta: “Basta que se escandaliza/ do meu cu porque se caga?/ Venha cá, boca de praga,/ que cousa mais mortaliza?/ O peido que penaliza/ é sorrateiro e calado:/ o peido há de ser falado/ ou ao menos estrondoso,/ porque aquele que é fanhoso/ é peido desconsolado.” (Gomes, João Carlos Teixeira. p. 368). Especialmente salientado pelo crítico brasileiro Pereira da Silva que, segundo João Carlos T. Gomes, insere o poeta ao Realismo Grotesco, enquanto catalisador de uma herança medieval caracterizado na fonte das cantigas de escárnio e maldizer, sua poética expressionista, de caráter aparentemente rebaixador, nos faz deparar com um grotesco universo, derivativo de uma época em que as palavras estavam longe de possuir uma abertura conceitual. A nota a seguir, esclarece estes aspectos que permeiam o tema em questão: “No realismo grotesco o rebaixamento do sublime não encerra de modo algum um caráter formal ou relativo. O “alto” e o “baixo”adquirem uma significação absoluta e rigorosamente topográfica. O alto é o céu; o baixo é a terra; a terra é o princípio da absorção (o túmulo, o ventre), (...). Sob o seu aspecto mais propriamente corporal, que não representa precisamente nenhuma parte separada do aspecto cósmico, o alto é a face (a cabeça); o baixo, os órgãos genitais, o ventre e o traseiro. É com estas significações precisas que funciona o realismo grotesco, incluindo a paródia medieval.” (Gomes, João Carlos Teixeira. p. 361).
Diante da explícita expressão do grotesco na obra satírica do poeta, seria possível identificarmos também resquícios desta visão em outras linhas poéticas do autor? Acaso teria o poeta, endurecido pela vida e pelos conflitos existenciais, imprimido em sua lírica seja religiosa ou amorosa, o sombreado rude e cético do seu paradigma literário burlesco? Para o leitor atento, a incongruência afiada, angustiosa e quase perversa também se exprime quando o poeta se volta para a sua leitura do sublime ou da sublimação. Este é o mesmo o poeta que, aparentemente, se suaviza diante da impiedosa condenação de um Deus moralizador, mas se veste de uma suavidade aterradora, que arrebata e machuca: “Como na cova tenebrosa, e escura,/ A quem abriu o Original pecado,/ Se o próprio Deus a mão vos tinha dado;/ Podíeis vós cair, ó virgem pura?(...)” (Matos, Gregório de. p 145); ou ainda: “Que és terra Homem, e em terra hás de tornar-te,/ Te lembra hoje Deus por sua Igreja,/ De pó te faz espelho, em que se veja/ A vil matéria, de que quis formar-te.// Lembra-te Deus, que és pó para humilhar-te,/ E como o teu baixel sempre fraqueja/ Nos mares da vaidade, onde peleja,/ Te põe à vista a terra, onde salvar-te.(...)” (Matos, Gregório de. p 146). Como se vê, esta expressão aparentemente suave e ao mesmo tempo rude e densa no religioso gregoriano, se manifesta na dor, no medo do pecado, na visão da morte fria, da desintegração da carne em pó e no confronto final entre as vaidades humanas e a salvação diante da morte.
Gregório é também existencialmente marcado por uma amorosidade concreta, erótica e desconfortavelmente direta para a sua época, que agride e escandaliza, utilizando-se, inclusive, de um prazer perverso de registrar palavrões, expressões chulas e vocabulário intencionalmente usado para chocar homens e mulheres do seu tempo: “Fodamo-nos ,minha vida,/ que estes são os meus intentos/ e deixemos cumprimentos/ que arto tendes de comprida:/ eu sou de vossa medida/ e com proporção tão pouca/ se este membro vos emboca,/ creio que ambos nos fica/ por baixo, crica com crica,/ por cima, boca com boca.” (Gomes, João Carlos Teixeira. p. 369).
Se a vida não lhe foi fácil, a poesia lhe causou tais transtornos. Imortalizou sua dura visão de mundo em poemas que representam verdadeiras armas contra o estabelecido da sua época. Construiu uma poética de função política, ativadora de choque e confronto diante das instituições vigentes, lançando golpes sucessivos de sarcasmos e ironias: “(...) A ignorância dos homens destas eras/ Sisudos faz ser uns, outros prudentes,/ Que a mudez canoniza bestas feras.// Há bons, por não ser insolentes,/ Outros há comedidos de medrosos,/ Não mordem outros não, por não ter dentes.// (...) Todos somos ruins, todos perversos,/ Só nos distingue o vício, e a virtude,/ De que uns são comensais, outros adversos(...).” (Matos, Gregório. p. 155).
Gregório de Matos foi um dos mais importantes exemplos do poeta brasileiro que se enriqueceu na herança do passado - burlesco medieval - e se instalou no presente do seu momento histórico conflituoso. Por fim, vislumbrou um tempo à sua frente mediante a audácia. Foi ele, na verdade, um poeta engajado e diga-se o que disser, tomou a defesa do povo, sendo fiel a sua visão particular da vida. Foi um grande cronista, sobretudo, ao retratar o Brasil dos colonizadores e dos exploradores, numa espécie de manifesto poético urbano de zomba e ironia, afrontando com sua desesperada angustia religiosa, com seu descaramento erótico ou com sua gargalhada sardônica uma sociedade perplexa, escondida hipocritamente no moralismo do seu tempo. Esta voz, imortal posto que é chama, ainda vibra em permanente poder diante de um Brasil contemporâneo que ainda abriga seus poderosos e dominadores, que ainda enfatiza suas múltiplas disparidades ao óbvio rigor das dualidades entre o social e o econômico, entre o imoral e a inocência.
FONTES BIBLIOGRÁFICAS
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 1968.
DIMAS, Antônio. Seleção de textos, notas, estudos biográficos, histórico e crítico (Literatura Comentada). São Paulo, Editora Abril Educação, 1981.
GOMES, João Carlos Teixeira. Gregório de Matos, O Boca de Brasa - Um Estudo de Plágio e Criação Intertextual. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1985.
MATOS, Gregório de. Poesia Selecionadas - Gregório de Matos.São Paulo, Editora FTD, 1993.
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 12º edição. São Paulo, Cultrix, 1974.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira. Vol 1, 2º edição. São Paulo, Cultrix, 1985.
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil. 13º edição. São Paulo, Vozes, 1991.
WISNIK, José Miguel. Poemas Escolhidos - Gregório de Matos. São Paulo, Cultrix, 1989.
Obras Completas de Gregório de Matos. IV Vol. Edição Universitária. Rio de Janeiro, Editora Janaína LTDA.
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