terça-feira, 5 de outubro de 2021

Fonte: Google


CONTO:


AOS CRENTES, AS CRENDICES


Havia muito que a cidade preparava-se anualmente para o Dia de Finados. Não para festejar ou reverenciar a memória dos seus mortos, mas para esperar, ansiosamente, qual seria o escolhido que o feriado lhes arrebataria do mundo dos vivos. 

Ninguém sabia ao certo quando aquela espécie de maldição principiara, nem se era, de fato, uma maldição, afinal, morre-se também em outros dias do ano naquela cidade tão pequena e, por isso, sem nome no mapa do seu estado. Porém, a fama correra ao longe e, nesta ocasião, a cada ano, sempre chegavam muitos visitantes curiosos, ávidos por certificar-se da sina funesta: quem viria a bater as botas naquele feriado dos mortos?

Ocorria um rebuliço crescente aos dias que antecediam o feriado até o seu marco no calendário. Ladainhas e rezas, novenas e trezenas, despachos e ebós, feitiços e amuletos, tudo era ecumenicamente válido na condução das crenças oficiais ou oficiosas, seculares, doutrinárias ou populares, para proteger a quem acreditava apaixonadamente nos presságios sinistros daquela sina que se abatia sobre a pacata e bucólica cidadezinha.

Dias antes, todos já começavam a farejar as possibilidades: se havia quem estivesse doente; se havia alguém jurado de morte; se havia risco de algum acidente iminente; se havia adultério com a temeridade de desfecho trágico... Ficavam de olho nos idosos, nas crianças desnutridas, nos frágeis recém-nascidos, nos acamados, nos que exerciam atividades arriscadas, nos que se arriscavam pular a cerca dos relacionamentos comprometidos. Enfim, se maldição ou lenda urbana, todos temiam, todos esperavam, todos comentavam... ou quase todos...

Pois, como não pedia deixar de ser, existiam os céticos e incrédulos de superstições ou qualquer crença além do material ou do comprovável pela ciência. Esses batiam no peito sem temor, como se virassem as costas para os falatórios dos impressionáveis.

Outros, como espertos oportunistas, lucravam. Alugavam quartos aos chegantes, vendiam santos, talismãs de proteção, filtros milagrosos, água benta. Pequenos restaurantes, ambulantes de comestíveis, marmiteiros ou vendedores de quentinhas, abarrotavam seus estoques. A comilança era farta aos que fartamente se refestelavam do turismo macabro. Os floristas ofereciam suas flores, para todos os gostos e para todas as posses. Rosas, lírios e orquídeas aos que preferiam os refinamentos dos ricos; Crisântemos, margaridas e cravos para a humildade dos simples.  

Outros, ainda, os políticos eleitos, ou aqueles eleitoráveis, faziam discursos passionais, lembravam os outros que já se foram como vítimas da infausta maldição. Realizavam homenagens, com discursos de sinceridade duvidosa, fazendo ir às lágrimas os familiares inconformados, que serviam aos flashes dos fotógrafos para as encomendadas reportagens nos jornais da capital, que evidenciavam a emoção barata e a hipocrisia daqueles que subiam as escadas do poder.

Naquele ano diferente não fora. As mesmas especulações foram feitas, as mesmas expectativas surgiram, os preparativos iguais, e a avidez dos interesses por debaixo dos panos também.

Então, eis que no raiar do Dia de Finados, um alvoroço nervoso quebra o silêncio da manhã nublada na pensão de Dona Maria das Neves. Aos passantes desavisados, apanhados pela curiosidade própria dos humanos, a aproximação foi inevitável e, aos poucos, foi se formando uma pequena multidão em que todos se perguntavam o que de fato se passava. Logo veio a notícia do drama anunciado, é que a morte batera à porta do quarto de um hóspede, chegado à cidade não se sabe se entre os tantos que vinham atraídos pela suposta maldição ou se chegara ali para realizar algum trabalho ou resolver alguma pendenga pessoal.

Logo, como um rastilho de pólvora, a notícia se espalhou e as perguntas também. Num disse-me-disse medonho, de boca em boca, especulações corriam: Quem era o morto? Qual a causa da morte? De que cidade ele veio? A família estava presente?

Pouco descobriram sobre o homem: um senhor na casa do 55 ou 60 anos, talvez vitimado pelos excessos dos hábitos cotidianos ao longo da existência, que comera e bebera em demasia, tendo a vida cobrado seu preço justamente naquele dia.

Porém, entre tantas indagações uma se destacava: Se a maldição do dia dos mortos sempre levava um morador da cidade, por que naquele ano um forasteiro fora escolhido? O que haveria de ocorrer agora? A família levaria o homem? A cidade reivindicaria o enterro? A quem pertencia o defunto?

Uns diziam:

- Ora, o dito cujo – que Deus o tenha! – morreu aqui e aqui deve ser enterrado.

Outros rebatiam:

- Nada disso, a família é que tem a posse. Devem enterrar o homem na cidade de origem.

Bem se via que a preocupação geral era com a tradição que seria maculada se o defunto não fosse enterrado no solo daquele lugar. O povo nem se dava conta que não se importavam com seus mortos, só queriam saber da tradição que favorecia a muitos naquela ocasião.

Convocaram urgente uma assembleia na Câmara de Vereadores para resolver o impasse. Todos foram: o padre, o pastor, o babalorixá, o prefeito, o dono da funerária, a florista, os vendedores de velas, a dona da pensão, os coveiros, o radialista, os curiosos, os fofoqueiros... Depois de muito debate, discussões e bate-bocas, não chegaram a uma conclusão. Foi quando de um canto da plateia uma senhora se manifestou:

- Perdão, mas devo anunciar que sou a viúva do falecido e, estes, são os meus dois filhos. Disse uma mulher com semblante tristonho, apontando para dois jovens ao seu lado. Era franzina, de pele clara e corpo esguio, com aparência em torno dos cinquenta anos de idade que revelavam ainda restos de uma beleza do passado. Suas vestes eram simples e prendia os cabelos lisos, clareados pelo sol, num coque baixo.

Todos se voltaram em silêncio repentino para a pequena família. A surpresa momentânea deu lugar a um constrangedor estado de vergonha, pois se davam conta que discutiam a propriedade do morto como se direito tivessem sobre seu corpo e sepultamento. O presidente da câmara pigarreou, pediu desculpas pelo tumulto e ofereceu condolências a família. Finalmente deu voz para a viúva se pronunciar.

- Senhor presidente-vereador, me desculpe interromper sua reunião, mas como tudo que estão falando aqui é sobre meu marido e sua morte, tive o atrevimento de me apresentar. Eu e minha família somos da cidade de Airumã, perto daqui, e moramos num pedacinho de terra nas redondezas da cidade.  Nossa casa fica para trás da Serra do Cristal. Meu marido nasceu nestas terras, onde seu pai era um pequeno sitiante que lidava com plantação de milho e feijão e ele continuou o serviço do pai até hoje. No início desta semana ele veio aqui para trazer uma pequena carga de milho e feijão encomendada por um comerciante daqui. Teve de ficar por duas noites para concluir a venda e o pagamento e se hospedou naquela pensão...foi quando aconteceu essa desgraça!...um amigo nosso que veio com ele na viagem para ajudar com a carga ligou para Airumã para pedir que fossem avisar pra gente do corrido. Viemos logo que ficamos sabendo. A prefeitura de lá cedeu o carro para levar o corpo para o sepultamento.

Ao tempo em que todos expressavam cara de espanto, o presidente da câmara tomou a palavra:

- Claro, claro, entendemos perfeitamente a vontade da família e sentimos muito a tristeza de todos vocês. Mas saiba a senhora que todos nós, inclusive o prefeito aqui presente, queremos demonstrar nossa consideração pelo seu marido, que faleceu em nossa cidade e pensamos que poderíamos homenageá-lo com um bonito enterro aqui mesmo em nosso cemitério, não é mesmo, Senhor Prefeito?

- Sim...claro...homenagem justa...que todos nós queremos fazer. Gaguejou o prefeito que, com o mesmo constrangimento e, ao mesmo tempo, cinismo político, confirmou o desejo “altruístico” da prefeitura e cidadãos da cidade em homenagear o falecido.

- Muito agradecemos, eu e meus filhos, por tamanha gentileza do senhor prefeito e do vareador-presidente. Nem sabia que meu marido era assim tão querido por essas bandas. Um homem tão simples... nem eu tinha conhecimento que ele gozava da amizade de pessoas tão importantes nessa cidade, ao ponto de se reunirem para organizar velório e enterro com homenagens. Mas, peço desculpa, precisamos levar o corpo para o sepultamento em Airumã, pois foi lá que ele nasceu e viveu; lá estão enterrados seus pais e um nosso filho que Deus levou pequenininho.

Assim ocorreu. A mulher franzina de olhar triste, acompanhada dos seus dois filhos, levou o falecido para o enterro esperado em sua cidade. Alguns de semblante perplexo e olho comprido ficaram espiando o carro até sumir na direção da estrada.

Viu-se, então, o desapontamento de todos os interessados, especialmente aqueles que se interessavam pelos lucros financeiros e políticos que aquela tradição da morte, não dos mortos, trazia. Perguntavam-se: E agora, como ficaremos? Sem morto e sem velório no dia dos mortos, como sempre foi desde muitos anos? A tradição será quebrada? A cidade perderá os turistas, os crentes, os romeiros que aqui se dirigem nesta data? Deixaremos de vender as velas, as flores, as refeições? De receber os hóspedes na pensão? De atrair as reportagens de jornais e televisão que aqui chegam para entrevistar os políticos, os padres, os vereadores?

Os que nada lucravam, mas aproveitavam a animação dos acontecimentos também ficaram desapontados. Tinham a convicção que nada mais seria como antes, que o fenômeno que deixara a cidade famosa não mais ocorreria. Sentiriam a perda do vai e vem dos chegantes; dos pequenos restaurantes cheios; da praça da Igreja com filarmônica tocando e ambulantes vendendo seus doces e lembranças artesanais; do velório do falecido de cada ano com cantorias, comes-e-bebes, cachaça e o vozerio das pessoas nos comentários sobre a vida do morto; do cortejo fúnebre até o cemitério, lento e choroso por parte dos familiares, mas nem tanto por parte dos políticos e dos curiosos. Sempre daquela maneira, o dia culminava com a pequena multidão seguindo o caixão ao fim da tarde, carregando suas flores e velas para compor a paisagem do sol que quase se ia, finalizando aquele repetido e lucrativo Dia de Finados de todos os anos. Assim acontecia.

 

É certo, porém, que nos livretos de cordel e nas histórias que correm de boca-em-boca hoje em dia, aquela cidade nunca mais viu um morto no Dia de Finados. Contrário disso, o dia lucrativo e quase festivo que era sempre de sol e céu azul, agora continuamente trazia nuvens plúmbeas e chuva fina. Crendice ou não, há aqueles que acreditam num castigo divino aos interesseiros que transformaram o feriado num dia de ganhar benesses e não de reverenciar seus antepassados. 

Genny Xavier

 

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente conto!
Com grande habilidade e talento, a autora prende o leitor e o leva a uma viagem envolvente à magia das crendices populares, ao mesmo tempo em que o faz refletir sobre a hipocrisia da sociedade, aqui representada por personagens que se repetem no tecido social, desde os tempos de Jesus, ou seja, vendilhões de templos, políticos demagogos, autoridades religiosas tolerantes a cultos duvidosos, curiosos e adeptos da pandega de toda ordem.
Esplêndido, parabéns!