ITABUNA:
OLHAR PERCORRIDO SOBRE OS DIAS DE ONTEM E HOJE
OLHAR PERCORRIDO SOBRE OS DIAS DE ONTEM E HOJE
Meus
olhos atentos sempre percorrem a cidade dos meus dias. Eu capturo imagens e
cenas para transformá-las em palavras narradas no corpo dos meus escritos. Mas
há algo além desse objetivo artístico ou além do que aparentemente importa no
enfoque dos fatos e dos dias. Meu olhar possui o impulso voyeur e meus passos a disposição
da busca do flâneur que
perambula pelas ruas com sua secreta percepção da realidade através do meu
factual ou incidental cotidiano grapiúna.
Durante
os dias de cada semana dos meses do ano eu chego ao trabalho e sento na cadeira
da minha sala de emprego público. Coloco os óculos e retiro da pasta os papéis
do expediente, mas há algo em mim que revolve minhas impressões de escritora.
Depois do gole de água e das doses de café o computador dá suporte aos meus
afazeres, porém, nas pausas dos intervalos eu escrevo poemas, ou prosas que
emergem dos meus devaneios urbanos. Diante dos meus papéis escritos eu
retrocedo a memória dos passos pelos cantos da cidade, experimentando suas
horas do dia ou da noite desta Itabuna que respiro, entregando-me, sem
resistência, às impressões da minha alma que bordeja avenidas e ruas, bares e
lanchonetes, ônibus lotados de pessoas especialmente comuns, viventes da
grandeza de suas vidas cotidianas.
Os
ocorridos fatos triviais ou inusitados que constroem os dias da cidade, que
estão na mira da minha observação, ora casual, ora invasiva, são matérias dos
meus temas. Eu devoro e rumino estes temas, todos que dizem da indiferente
pressa das ruas ou de suas surpreendentes solidariedades; que dizem do ladrar
dos cães vagabundos ou do silêncio dos que dormem nas ruas; que dizem das
matanças das tocaias pela posse de terras do passado ou da posse do território do
tráfico de hoje em dia e, ainda, que dizem dos letreiros que infestam o centro
com suas letras desenhadas em placas coloridas ou em luz neon, quando cai a
noite.
Além
da gente diversa que circula pelas ruas, que reza nas igrejas, que se alimenta
nas lanchonetes e nos restaurantes de esquinas, que descansa preguiçosamente
nos bancos das praças, embalando conversas cotidianas com o outro sentado ao
lado, que caminham nas várias direções em busca dos seus afazeres, além de tudo
isso, há algo mais que personaliza uma cidade, especialmente esta que é a
minha. Toda paisagem urbana é própria e única quando observada com a atenção
merecida. Percebe-se seus detalhes, o que é velho e novo, suas idiossincrasias
arquitetônicas e os cheiros peculiares de cada avenida, de cada rua de flor ou
lixo, de calmaria ou turbulência.
Quando
eu ando pela cidade, na busca dos temas urbanos que apresento aos meus
leitores, é possível traçar a geometria no mapa de lugares, você vê ladeiras,
canais, becos, avenidas, edifícios, casas, telhados, concretos, asfaltos; você
não tem ideia do que chamará sua atenção, do que vai lhe surpreender, mas há um
impulso para seguir, observar, sentir.
Por
isso digo tudo sempre tão abertamente aos que me ouvem, sobre os detalhes, dos
mais belos, banais e inusitados aos mais estúpidos ou revoltantes, detalhes
sobre os ônibus, sobre os mendigos, sobre os números escritos no alto das
fachadas das casas quase em ruínas ou que já puseram o iluminado neon das
modernas reformas. Às vezes é triste perceber que a história da cidade se perde
em meio às suas modernas mudanças, como as fachadas das casas antigas que
sempre me atraíram e que, aos poucos, foram sendo demolidas, cedendo lugar para
os prédios comerciais ou residenciais.
Outro
dia, enquanto andava pela rua, percebi um grupo de rapazes parados em frente a
um prédio velho de uns seis andares observando uns artistas que evoluíam
performances de teatro de rua, acrobacias e malabares. Havia uma pressa imensa
das pessoas que não percebiam a simples beleza artística daquela apresentação.
Elas passavam ao largo sem enxergar, iam empurrando pra frente o tempo, sem que
se pudesse perder nenhum minuto por mais precioso que fosse. Moços e velhos,
homens e mulheres, todos com pressa, sentindo a urgência da vida. Mas aqueles
rapazes olhavam como se percebessem, pareciam ter sido tocados pelo instante de
relaxamento. Aquilo me deixou feliz, como se ainda houvesse uma esperança de
conexão humana na frieza da cidade. Então segui em frente levando o resquício
daquele breve contentamento. No ponto de ônibus as pessoas aguardavam e eu fui
ter com elas naquela espera cotidiana. O meu ônibus chegou depois da passagem
de um carro da prefeitura raspando o chão. Subi, esperei na fila caótica e
apertada até chegar à roleta de passagem. Ainda consegui um lugar onde sentei
junto da janela feito um saco de batatas jogado ou parecendo um cachorro
cansado. Descemos lentos, circulando a praça e subindo a ladeira comprida rumo
ao centro.
Ainda
ontem, quando já voltava das minhas andanças ao final da tarde nublada parei a
espiar a vitrine de uma papelaria. Havia muitas novidades além daquelas que se
vendem em papelarias. Havia, por exemplo, umas miniaturas em resina com
reproduções de monumentos famosos do mundo. Estava lá a Torre Eiffel, de Pisa,
a Estátua da Liberdade, o Cristo Redentor, o Elevador Lacerda. Enquanto eu
olhava ia pensando nos estranhos gostos dos cidadãos urbanos, nas
quinquilharias absurdamente inúteis que as cidades acumulam para o fascínio
consumista de suas gentes. Alguém passou por mim e também ficou olhando, talvez
atraído pelo meu interesse na tal vitrine. Olhei para a desconhecida com um
conformado sorriso e um gesto sutil de saudação. Segui meu rumo. Adiante, uma
loja de roupas estava lotada, resultado da liquidação de final de estação.
Aliás, parecem mais frios esses finais de tarde de inverno.
Assim,
nestas experiências dos dias eu recolho os conteúdos dos meus escritos para
expor esta cidade que a cada dia morre do jeito que foi para tornar-se outra no
amanhã de logo mais. Há nisso tudo, nos meus sentimentos que também exponho aos
meus leitores, um sentido maniqueísta, como quem se divide melancolicamente
entre ter saudade das reminiscências de ontem e ter nas mãos as perspectivas
inusitadas do amanhã.
Depois
desses meus devaneios, eu penso no aniversário da cidade, penso que o passar
dos anos traz gostos e desgostos diversos, sabedorias e dores, festejos e
despojos, lirismo e realidade.
GENNY XAVIER
*Crônica publicada em 28/07/2018 - Jornal Agora/ Caderno especial em homenagem aos 108 anos de emancipação política de Itabuna-Bahia.
Um comentário:
Parabéns pelo blog....abraços
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