OS ESCUROS OLHOS DA NOITE
“A cidade é uma cobra grande
de rabo comprido
e tem os olhos de fogo
e os dentes de vidro
e tem um barulho louco
dentro da barriga...
Essa cobra é a cidade.
Essa cobra mora numa selva
cinza de cimento
e seu veneno não tem remédio (...).”
(Trecho da música “A Cidade”, de Zenrique Guimarães)
Havia um risco enorme vagar os beirais das ruas desertas. Um peso de mil anos abatia a noite. Entretanto, vultos de homens escorregavam nas sombras e esgueiravam-se nos escuros das esquinas. Não havia escolha senão habitar o acaso da rua em cada ocaso do sol. Tivesse sorte, ainda respirasse até a réstia de lua morrer no céu azeviche. Cada romper da noite uma batalha travada e cada dia amanhecido uma sorte vencida.
Mas era nos beirais das ruas que se nutria o fio de vida vã, absurda, feita de fome e sede. A fome fartada dos restos de lixo disputado a ferro e fogo. A sede saciada nos goles de cachaça ordinária sorvida para suportar o frio do corpo e anestesiar a dor de pensar.
Por qualquer descuido viraria número na estatística do dia. Na rua só precisava adaptar-se visceralmente. Sobreviver dependia de engrossar o couro e nunca ser tomado pela surpresa.
Os olhos andavam cautelosos por cada beco percorrido. Quase perto estava o seu tesouro escondido e suas armas de combate. Mas o medo lhe gelava a espinha por imaginar se o rapa teria levado tudo na operação cidade limpa. Correu, quase trôpego, percorrendo os cantos das ruas, esfregando-se nos muros para chegar a fenda da parede do imóvel velho onde escondia suas tralhas. As mãos trêmulas apalparam o tesouro. Tudo estava ali diante do seu alívio, um quase delírio, um quase êxtase. Papelão, cobertor e água: armas para que se vença sede e frio, abandono e dor nas noites intermináveis das ruas.
No canto fétido do passeio, tendo a marquise como teto, talvez pudesse dormir para sonhar com a vida deixada na esquina do tempo. Os devaneios oníricos romperiam a crosta de sujeira do corpo, os pruridos das feridas provocadas pelas unhas imundas. Talvez sonhasse a música dos anjos transposta aos sons das sirenes das rondas policiais. Talvez sonhasse com o cheiro de pão caseiro, com sorrisos de filhos e mãos de mulher na sua pele. E sonhasse também como um novo amanhecer depois da noite de olhos escuros. Talvez ao rasgar o manto bordado de estrelas, o dia rompesse claro e azul.
E, então, veio o sono e o frio profundo do corpo e alma; e uma passagem lenta das horas escuras e uma distância infinita da manhã azul. Arrancou um suspiro das entranhas e um frêmito da pele. Aspirou os cheiros ácidos, ocres, voláteis e fechou os olhos como quem se entrega.
Sapatos lustrosos e saltos elegantes zuniam os passos no vai-e-vem do dia plúmbeo. As pessoas tinham pressa, vestidas com seus casacos de lã e linho corriam as calçadas imunes aos loucos que devaneavam e aos mendigos que acordavam; imunes aos que permaneciam estáticos e mudos diante do mundo que girava veloz rumo à próxima esquina. Tudo se repetia no cotidiano da cidade que já amanhecia tensa e neurótica, repleta de transeuntes cegos dos detalhes das vidas paralelas, cegos da percepção de uma realidade desconhecida, cegos para as ocorrências das batalhas travadas pelos habitantes das noites entrincheiradas.
Ao canto, a recolher seus trapos na lentidão do corpo, o homem já não lembrava de pensar nos sonhos, nem sabia se os havia tido na noite anterior. Agora era a vez de outro ritual, de uma parte do outro lado dos seus dias de 24 horas. Os andrajos não cobriam determinados rasgos por onde o frio entrava naquele dia cinza, de sol tímido e nuvens pesadas. Mas não lhe era surpresa aquele amanhecer, nem os tantos outros de sol ou frescor. Viver ao léu, emparelhando o tempo, era sua realidade fazia anos. Tudo continuaria na sua órbita, do amanhecer até o ocaso que logo lhe traria de volta os escuros olhos da noite...e o esgueirar dos muros das ruas, dos becos vadios, e o resgate das suas armas, e o recrudescer da vontade dos sonhos, e o sono engolindo tudo para além do acordar do dia. Exatamente dessa maneira tudo continuava assim fazia muito, pois era ali, nos beirais das ruas, que se nutria o fio de vida vã, absurda, feita de fome e sede.
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança."
(António Gedeão)
8 comentários:
Genny,
a letra da música ( não conhecia), as fotos e este texto tão bem escrito , rico de detalhes que desde o início interage com o leitor, revolvendo memórias e trazendo a tona observações desta realidade nua e cruel foi muito bem alcançada e finalizada sensível, delicada e lindamente, nesta primeira parte, com os versos de António Gedeão. Obrigada.
Carinhoso beijo, querida amiga.
Interessante, Genny. Temos textos muito semelhantes a este respeito, os miseráveis e ofendidos.
Interessante que não é um problema social, como quase todos pensam.
É doença e alcoolismo, outra praga.
Sem dúvida, um mundo estranho.
Belo texto!
Carinho,
Jorge
quanta sensibilidade em realidade tão dura.
bjs, isabelle
Memoria e felicidade andam juntos em forma de leituras em seus textos!
Belissimas observações você trás até nós.
Continue sempre nessa pegada.
Abraços,
Luiz Reginaldo
Olá Genny,
A beleza do seu texto faz contraste com a dura realidade citada.
Um abraço,
Dalinha
Parabéns pelo post e agradecimentos por António Gedeão ( Rómulo de Carvalho, professor)
Um abraço, linda.
Boa memória
Bj
Esse texto, prosa-poesia, tem o poder de fazer aparecer aquilo que nossos olhos teimam em não enxergar. Lindíssimo e dorido como só a realidade pode ser. Obrigado querida.
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