segunda-feira, 1 de junho de 2009

Conto: Genny Xavier


VOZES VELADAS... VELUDOSAS VOZES*


Sonhar era mais que dormir e flutuar sob imagens oníricas. Era ouvir em pleno dia aquela voz dentro da cabeça mandando-a criar outros mundos. A voz não se conformava com o cotidiano, queria fazê-la mais importante do que era, não em poder ou dinheiro, mas como centro e protagonista de uma história. A voz a perseguia pelos corredores da casa, dizia que a banalidade não valia nada, que era possível ser personagem, construída para a aventura, para a grandiosidade, para o triunfo certo dos que sonham e fantasiam.
As tarefas eram cada vez mais penosas sempre que a voz a embriagava daquele desejo de ir morar na imaginação. Queimava peças de roupas ao passar, trocava o doce e salgado dos pratos, encharcava as plantas, a se transformava em estátua por horas, vagando entre a fronteira para fora dos olhos ou para dentro deles.
O marido começou a reclamar, o filho também. Não cumpria mais os horários e destruía coisas ao seu redor. Viu-se observada por eles, pela severidade do marido e suspeição do filho. Suas mãos tremiam as vezes, como as dos bêbados que se abstém do álcool. Toda ela tremia quando observada pelos estranhos olhos que a estranhavam. Era como ficar exposta no gancho do frigorífico, sujeita à avaliação de suas qualidades ideais ou da ausência delas, as vezes a total ausência delas.
Aprisionara por anos aquela voz, mantida nalguma cela insonora do seu corpo, com todos aqueles recursos do não-ouvir. Suspeitava que ela lhe trouxesse problemas de ordem prática porque aquela voz era perigosa à lógica do real. Quem dela se achegasse descobriria seus tiques para ouvi-la e isso seria demais para os sentidos da normalidade das pessoas. Aprendeu muitos truques para guardá-la a sete chaves quando seus apelos impositores eram quase irrefreáveis. Fora um aprendizado tortuoso, regado ao tom de sua estranheza, tomado de uma constante vigília, sobressaltado de temores, conduzido pela sua tentativa de ser perspicaz e de fazer-se tranqüila como se não houvessem sons perturbadores em volta de si.
Mas, enfim, aquele era um tempo em que havia perdido o controle. Talvez tivesse dela se apropriado o espírito curioso de Pandora. A voz lhe atraia para seu interior como se tivesse cansada de não ter sua companhia de ouvinte. A voz era agora exigente demais para dominá-la ou para camuflar seus apelos. Talvez ela também estivesse cansada da resistência. Resistir lhe causava dores de cabeça terríveis e os analgésicos nem mais faziam efeito.
Esconder das pessoas sobre as vozes também era difícil. Desde menina escondia dos outros a percepção daquela sua excentricidade. Foi muito confuso quando percebeu que somente ela as ouvia. A criança pequena que fora se assustou muito quando tomou consciência de que a altura medonha das vozes era totalmente insonora para quem quer que estivesse perto dela. Então compreendeu que mesmo não sendo louca as pessoas poderiam pensar que fosse por isso camuflou bem seu dom. Todos sempre a julgaram tímida e introspectiva, uma criança calada, uma adolescente circunspeta. Julga-la louca seria muito fácil para os outros, dada suas atitudes e estranhezas.
Houve um tempo, em sua juventude que caminhava pelos idos dos 20 anos em que resolveu ignorar as vozes. Precisava se sentir como as outras jovens da sua idade. Passou a gostar de música e a ouvi-las em tom alto, em ritmo frenético. Freqüentava as boates de sua cidade. Nas pistas de dança fechava os olhos para se deixar tomar pelos sons vibrantes, de altas freqüências de mega bytes. Sabia como driblar o som surdo das vozes dentro dela, a música era muito boa para isso.
Nesta mesma época de música alta dentro dos seus ouvidos conhecera o homem que hoje dividia com ela casa e cama, filho e animais domésticos. Conheceram-se numa pista de dança, enquanto ela dançava e dançava embriagada pela música. Certa noite ele lhe confessou o quanto ficou seduzido pela sua total concentração musical, enquanto o seu corpo acompanhava o ritmo explosivo da canção.
Assim, ela descobriu mais uma maneira de abafar suas vozes interiores, uma maneira de não perceber aquele solilóquio imperativo dentro dela. Essa maneira chegou pela ocupação de coisas em sua vida. Namoro, sexo, trupes de amigos, festas animadas, trabalhos ocasionais, decisão de casamento, providências a serem tomadas, vida a dois, um filho, cotidiano sempre preenchido pelos afazeres, afazeres, afazeres... Os sucessivos acontecimentos eram compensadores contra as sempre investidas da vontade de se deixar abrir a guarda para que as vozes tomassem sua cabeça de novo. Era preciso ferver os dias com ações concretas, que exigissem dela o máximo de ocupação. Então, não daria corda aos ouvidos para ouvir as vozes, era preciso aquele controle exaustivo, deixa-las lá, na mais profunda sala de vedação sonora do seu cérebro. Era preciso o controle de tudo, como não esquecer os remédios para as dores de cabeça, como não esquecer de fazer as coisas, como não esquecer de ouvir música, como não esquecer de evitar os tiques, os zumbidos e a vontade poderosa da sua cabeça.
Mas, com os anos foi percebendo seus inúteis esforços não reconhecidos por ninguém. Que mérito havia tido por esconder dos outros aquilo que era? O que sentia? O que ouvia? Não havia conseguido ser visível para ninguém. O casamento se arrastava no tédio que o marido sentia por nunca tê-la inteira, feliz e calma. Não era mais a jovem excêntrica que o havia seduzido numa pista de dança. O tempo se ocupou de torná-la um incômodo estranho para o homem que a desconhecia. Como também para o filho que pela infância perceptiva sentia uma mãe distante, escondendo-se em devaneios enquanto lhe preparava o lanche ou o levava para a escola. Não era uma mãe como as outras, o filho bem sabia disso em silêncio e se deixava mostrar isso quando a olhava.
No terraço da casa agora passava horas olhando tudo do alto. Os telhados das casas, o desenho íngreme das ruas, os fios elétricos que as vezes abrigavam o pouso de pássaros, o céu estampado diante de si e a silhueta do mar tão perto, fazendo o horizonte se confundir entre os dois. Os momentos livres traziam seus passos para o refúgio insólito do silêncio, pois ali ela poderia ouvir com liberdade tudo aquilo que lhe era negado pela cobrança dos normais. Não desejava mais lutar. Era mais leve ouvir e ouvir, era mais leve dançar e girar diante das estrelas e diante da lua.
Então, numa noite de verão e lua enorme, aspirando os perfumes do mar, tomando o mundo ao seu redor, ouviu o chamado da lua. Mas que lua a chamava? Aquela estática no céu azul-escuro? Aquela trêmula no mar reluzente de prata e grãos de areia? Que voz lunar retumbava seu desvario noturno? Os ouvidos pregavam uma peça, os sentidos faziam troça. Havia delírio ou música? Havia loucura ou poesia?


Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

Era preciso mais nitidez, necessitava daquela certeza de sons trazidos pela claridade estonteante da bola mágica do céu. Se pudesse sonhar, se pudesse voar, se pudesse chegar perto, escutar claramente sua voz. Os olhos perscrutavam, corriam para mar e para o tapete intangível do firmamento. Que lua exigia seus reflexos, que lua clamava por seus ouvidos sensíveis demais? Aquela que ora se desmanchava ao balanço das ondas? Aquela que ora permanecia no colossal universo, quieta para os seus olhos?
Seu corpo transpirava, escorria seus suores na vertigem do verão. Não havia liberdade nas vestes, não havia desapego nem entrega quando se cobria de panos. Precisava ser livre para ouvir, dispensar os apetrechos, jogar fora os adornos, despir-se, enfrentar a nudez inteira para banhar-se de luz.


No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

Havia então, na plenitude da sua nudez, uma força que lhe empurrava. As pessoas provavelmente não a compreenderiam. Ali, no cume do mundo, no terraço da sua casa em frente ao mar, ninguém a compreenderia nua, nem a escutar o chamado da lua, nem a desejar ir ao seu encontro. Sons de violões chegavam das ruas, era bom deixar que eles embalassem seu canto. Cantava baixinho para a lua, ainda tentando esconder dos outros o confronto com seus segredos. Camuflar a propagação dos sons sempre fora o que fizera em sua vida, mas naquele momento, embora cantasse baixo, a música ressoava límpida em seus ouvidos, sua voz dava vida as melodias dos violões das ruas.

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...

Quando criança, achava que a vozes vinham dos anjos. Imaginava que talvez ela fosse um deles, caída na terra por descuido; que a vozes eram sinais de comunicação dos seus irmãos. Passava horas contemplando o céu, aguçando os ouvidos, esperando que os anjos soprassem suas vozes dentro da sua cabeça; que eles a chamassem de volta ao mundo dos anjos. As vozes eram macias, nos seus sentidos de criança, as sentia como sons táteis, como vozes de veludo, como melodias em que se pudessem percorrer os dedos e sentir sua maciez. Naquele momento do presente de sua vida se sentia como a criança de antes, a julgar-se anjo, sentindo a maciez das vozes de veludo dos outros anjos, seus iguais. Sentia-se livre, finalmente entregue a sua angelical condição de voar para onde seria a morada dos anjos...talvez longe, no coração da lua, tão trêmula no mar e tão serena no céu.

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...


Talvez não tenha sido surpresa para o marido a notícia de que sua esposa havia se jogado do terraço da casa completamente nua. Talvez ele tenha compreendido seu ato quando encontrou entre as coisas da mulher um livro de poemas marcado numa página com o título “Ismália”. Os versos lhe pareceram algo como um bilhete de despedida da companheira, seu último esforço para que ele a entendesse. Ela fora a mulher enigmática que o surpreendera desde o momento em que a viu pela primeira vez. Mas ele havia pretendido desvendar seus segredos como companheiro ou amante e não havia conseguido. Não fora suficiente tornar-se seu marido, pai do seu filho, ter-lhe dado uma casa bonita em frente ao mar. Nada disso fora suficiente, como se não fosse exatamente isso que ela esperasse dele, como se não fosse possível ele compreender a transcendência dos olhos dela e, assim, com o tempo, tenham os dois desistido disso tudo: Da ânsia dela em ser compreendida e da angústia dele em não compreendê-la.
Havia agora certa linha de passiva compreensão dele para com o último gesto da esposa silenciosa dos últimos tempos. Como se os versos do poeta desvendassem os sonhos e desejos finalmente satisfeitos dela. O cheiro do mar invadia suas narinas, ele olhava para as águas, além das ondas; olhava o céu, além das nuvens e se sentia capaz de compreendê-la finalmente, como se fosse possível enxergá-la no momento em que seu corpo caiu ao mar e sua alma alada subiu ao céu de volta para casa...casa? onde seria? Quem sabe lá na lua, aquela que a havia levado.

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...**


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* Verso do poema “Violões que choram”, de Cruz e Sousa.

** Poema “Ismália”, de Alphonsus Guimaraens.

4 comentários:

Carlos Maurício disse...

E as vozes não se calaram...
Um belo conto Genny
Meus parabéns!

Anônimo disse...

Oi!
Me impressiono com tal inteligência.
Saudades!!!
Beijo!!!
Djalma

Taty disse...

Maravilhoso conto.Adorei...
Uma mulher aprisionada nela mesmo enfim se liberta...Um único e ultimo vôo e a sensação eterna de estar livre.

Dalinha Catunda disse...

Amei o conto!!! e mais, tenho paixão por esse poema, Ismalia" acho até que sei de cor e salteado.
Parabéns!!
Dalinha Catunda