segunda-feira, 23 de maio de 2022


 

CONTO:

REQUIÉM PARA A GAROTA QUE AMAVA JANIS JOPLIN

 

Ela sempre dizia, entre um cigarro e outro…ouvindo a Janis:
“Ah! se um dia me mate, há de ser ouvindo a Janis...”

Era uma noite de céu azul escuro e havia muitas estrelas salpicadas nas lonjuras do universo. Saí para relaxar a inquietação que me tomava...queria estar sozinho, andar em minha própria companhia. As ruas me pareciam arrefecidas da costumeira agitação ou seria o frescor do clima ameno que aguçava o meu estado de ânimo que minha alma silente exalava?

Eu procurava um sentido mais palpável naquela noite pois tudo me parecia imponderável. Pensei na rotina dos dias, no cotidiano que a gente acredita ser imutável diante de tudo que criamos ao redor das fases da vida que duram meses, anos...trabalho, família, happy hour ao fim do dia longo, almoço de domingo, cachorro de estimação, amigos de longas datas...tudo que, desde a infância, temos a ilusão de que irá permanecer nas etapas de vida.

Mas as coisas mudam, as vezes devagar e, em outras, abruptamente. Nem sempre percebemos, de tão natural que ocorrem, ou não nos conformamos por nos causar dor e mágoa. O certo mesmo é que ao longo do percurso o velho clichê é uma verdade indigesta que engolimos: nada é para sempre...

Ela sempre dizia, entre uma vodca e outra…ouvindo a Janis:
“Ah! se um dia me mate, há de ser ouvindo a Janis...”

O centro da cidade parecia me acolher e a hora noturna também. Uma brisa leve me trouxe um alívio contra o peso do corpo e da cabeça. Uma cerveja cairia bem. Atravessei o largo da praça e subi a ladeirinha calçada de pedras rústicas na direção de um bar que eu conhecia bem. O local agradável é frequentado pela juventude boêmia em que mesas de madeira se dispunham dentro e fora do local. Artistas, universitários, professores, amantes da boêmia, ali se reúnem para ouvir boa música, conversar ou sentar sozinho numa mesa para beber e pensar na vida, como eu naquela noite.

Naquele dia da semana o bar estava quase vazio. O blues suave de John Mayall ecoava a canção Mists of time no som ambiente...a música parecia encomenda para meu estado de alma, e trechos da sua letra traziam lembranças que ficavam dançando na minha cabeça...

“Às vezes um sonho vai me assombrar
E eu vejo o rosto de uma jovem
Ela era uma vez de verdade
E ela realmente compartilhou meu espaço?”
 
“Até agora minha vida é uma jornada
E eu não mudaria nada
Todos esses anos de aventuras ousadas...”

Pedi uma cerveja e me sentei do lado de fora. Tudo tão familiar para mim...o bar, as pessoas, a música, a garçonete...ainda assim tudo me parecia diferente, estranho, como alguma coisa perdida que nunca mais seria recuperada, como uma lacuna vazia, que não poderia ser mais preenchida.

Para os sensíveis, a vida pode ser dura. Inadaptados aos rigores da realidade e, sôfregos de desejos libertários, se deixam consumir. Uma infância de traumas e uma adolescência de perdas deixa marcas, especialmente quando se aliam a um coração abrasado e um intelecto aguçado e filosófico. Ela era exatamente assim, não experimentava tempos de calmarias, não abria mão de seus impulsos, sofria de avidez crônica e não se permitia tréguas para se abastecer do combustível da paz interior. Para aqueles que tentavam frear seus impulsos, dizia: “A vida é um trem fora dos trilhos...enquanto ela segue, mesmo desgovernada, eu sou a maquinista que comanda tudo. Calmaria eu deixo para a minha velhice, se até lá eu chegar.”

Desde a meninice já éramos amigos e compartilhávamos a mesma rua, as mesmas brincadeiras e era sempre ela que me puxava para as aventuras mais arriscadas. Em sua rebeldia precoce enfrentava os valentões com seu costumeiro deboche e apanhava bastante por isso e, na tentativa de defendê-la, eu acabava apanhando também. Quando adolescente e leitora frequente de poemas, em meio ao sorriso solto, dizia: Já pensou, Marcelo? se Fernando Pessoa tivesse conhecido a gente, certamente não escreveria aquele verso... “Nunca conheci quem tivesse levado porrada”... Naquela época eu nem sempre entendia o que ela falava. Meus sentidos estavam ligados a outras coisas e eu não queria saber de versos. Eu só queria pulsar com a idade dos hormônios.

Ela tinha uma ânsia que sempre lhe acompanhou. Vivia nas profundezas, mas submergia frequentemente para respirar os ares de uma existência repleta de impulsos, talvez assim suportasse melhor os subterrâneos para onde sempre voltava, aqueles lugares ermos e frios da alma, onde seus pensamentos dormiam.

As horas já se iam noite adentro e o turbilhão de sentimentos começava a suavizar em minha alma...talvez tivesse sido a caminhada, ou o efeito da cerveja e do blues. Mas a tristeza não, essa ainda iria doer por um tempo, como uma ferida de lenta cicatrização. A dor tem seus mistérios para regenerar um coração partido que não aceita a morte que nos golpeia no corpo e na alma e nos deixa perplexos, sem entender seus desígnios e mistérios. O que é mais compreensível, quando a morte nos escolhe ou quando escolhemos a morte? É sempre recorrente pensarmos no sentido da vida. Mas e se as respostas encontradas para nossos questionamentos não sejam aquelas que, no geral, esperam de nós? Que respostas ela teria encontrado para a renúncia da vida? O certo é que, desde cedo, ela aprendera a pensar e, quanto mais pensava, mais se combalia. Arriscou olhar para o abismo e não se protegeu do abismo que olhava de volta para ela.

Paguei a conta do bar e tomei o rumo de volta à minha casa.  Nos passos da minha melancolia eu ia lento, sem pressa. Pensava no dia que me esperava na manhã seguinte a engolir as horas do cotidiano. O amanhã guardava suas novas batalhas. Enquanto isso, eu caminhava sob um céu de estrelas intangíveis.


Genny Xavier 

2 comentários:

São disse...

É bom regressar aqui.

Abraço, tudo de bom

Jaime Portela disse...

O seu conto é fabuloso.
E a sua narrativa denota que tem fôlego para o romance (este magnífico texto poderia ser o início de um).
Boa semana, amiga Genny.
Abraço.