CONTO:
REQUIÉM
PARA A GAROTA QUE AMAVA JANIS JOPLIN
Ela sempre dizia, entre um cigarro e
outro…ouvindo a Janis:
“Ah!
se um dia me mate, há de ser ouvindo a Janis...”
Era uma noite de céu azul escuro e havia
muitas estrelas salpicadas nas lonjuras do universo. Saí para relaxar a
inquietação que me tomava...queria estar sozinho, andar em minha própria
companhia. As ruas me pareciam arrefecidas da costumeira agitação ou seria o
frescor do clima ameno que aguçava o meu estado de ânimo que minha alma silente
exalava?
Eu procurava um sentido mais palpável
naquela noite pois tudo me parecia imponderável. Pensei na rotina dos dias, no
cotidiano que a gente acredita ser imutável diante de tudo que criamos ao redor
das fases da vida que duram meses, anos...trabalho, família, happy hour ao fim do dia longo, almoço
de domingo, cachorro de estimação, amigos de longas datas...tudo que, desde a
infância, temos a ilusão de que irá permanecer nas etapas de vida.
Mas as coisas mudam, as vezes devagar e,
em outras, abruptamente. Nem sempre percebemos, de tão natural que ocorrem, ou
não nos conformamos por nos causar dor e mágoa. O certo mesmo é que ao longo do
percurso o velho clichê é uma verdade indigesta que engolimos: nada é para
sempre...
Ela sempre dizia, entre uma vodca e
outra…ouvindo a Janis:
“Ah!
se um dia me mate, há de ser ouvindo a Janis...”
O centro da cidade parecia me acolher e
a hora noturna também. Uma brisa leve me trouxe um alívio contra o peso do
corpo e da cabeça. Uma cerveja cairia bem. Atravessei o largo da praça e subi a
ladeirinha calçada de pedras rústicas na direção de um bar que eu conhecia bem.
O local agradável é frequentado pela juventude boêmia em que mesas de madeira
se dispunham dentro e fora do local. Artistas, universitários, professores,
amantes da boêmia, ali se reúnem para ouvir boa música, conversar ou sentar
sozinho numa mesa para beber e pensar na vida, como eu naquela noite.
Naquele dia da semana o bar estava quase
vazio. O blues suave de John Mayall ecoava a canção Mists of time no som ambiente...a música parecia encomenda para meu
estado de alma, e trechos da sua letra traziam lembranças que ficavam dançando
na minha cabeça...
“Às
vezes um sonho vai me assombrar
E
eu vejo o rosto de uma jovem
Ela
era uma vez de verdade
E
ela realmente compartilhou meu espaço?”
“Até
agora minha vida é uma jornada
E
eu não mudaria nada
Todos
esses anos de aventuras ousadas...”
Pedi uma cerveja e me sentei do lado de
fora. Tudo tão familiar para mim...o bar, as pessoas, a música, a
garçonete...ainda assim tudo me parecia diferente, estranho, como alguma coisa
perdida que nunca mais seria recuperada, como uma lacuna vazia, que não poderia
ser mais preenchida.
Para os sensíveis, a vida pode ser dura.
Inadaptados aos rigores da realidade e, sôfregos de desejos libertários, se
deixam consumir. Uma infância de traumas e uma adolescência de perdas deixa
marcas, especialmente quando se aliam a um coração abrasado e um intelecto
aguçado e filosófico. Ela era exatamente assim, não experimentava tempos de
calmarias, não abria mão de seus impulsos, sofria de avidez crônica e não se
permitia tréguas para se abastecer do combustível da paz interior. Para aqueles
que tentavam frear seus impulsos, dizia: “A
vida é um trem fora dos trilhos...enquanto ela segue, mesmo desgovernada, eu
sou a maquinista que comanda tudo. Calmaria eu deixo para a minha velhice, se
até lá eu chegar.”
Desde a meninice já éramos amigos e
compartilhávamos a mesma rua, as mesmas brincadeiras e era sempre ela que me
puxava para as aventuras mais arriscadas. Em sua rebeldia precoce enfrentava os
valentões com seu costumeiro deboche e apanhava bastante por isso e, na
tentativa de defendê-la, eu acabava apanhando também. Quando adolescente e
leitora frequente de poemas, em meio ao sorriso solto, dizia: Já pensou, Marcelo? se Fernando Pessoa
tivesse conhecido a gente, certamente não escreveria aquele verso... “Nunca
conheci quem tivesse levado porrada”... Naquela época eu nem sempre
entendia o que ela falava. Meus sentidos estavam ligados a outras coisas e eu
não queria saber de versos. Eu só queria pulsar com a idade dos hormônios.
Ela tinha uma ânsia que sempre lhe
acompanhou. Vivia nas profundezas, mas submergia frequentemente para respirar
os ares de uma existência repleta de impulsos, talvez assim suportasse melhor
os subterrâneos para onde sempre voltava, aqueles lugares ermos e frios da
alma, onde seus pensamentos dormiam.
As horas já se iam noite adentro e o
turbilhão de sentimentos começava a suavizar em minha alma...talvez tivesse
sido a caminhada, ou o efeito da cerveja e do blues. Mas a tristeza não, essa
ainda iria doer por um tempo, como uma ferida de lenta cicatrização. A dor tem
seus mistérios para regenerar um coração partido que não aceita a morte que nos
golpeia no corpo e na alma e nos deixa perplexos, sem entender seus desígnios e
mistérios. O que é mais compreensível, quando a morte nos escolhe ou quando
escolhemos a morte? É sempre recorrente pensarmos no
sentido da vida. Mas e se as respostas encontradas para nossos questionamentos
não sejam aquelas que, no geral, esperam de nós? Que respostas ela teria
encontrado para a renúncia da vida? O certo é que, desde cedo, ela aprendera a
pensar e, quanto mais pensava, mais se combalia. Arriscou olhar para o abismo e
não se protegeu do abismo que olhava de volta para ela.
Paguei a conta do bar e
tomei o rumo de volta à minha casa. Nos
passos da minha melancolia eu ia lento, sem pressa. Pensava no dia que me
esperava na manhã seguinte a engolir as horas do cotidiano. O amanhã guardava
suas novas batalhas. Enquanto isso, eu caminhava sob um céu de estrelas
intangíveis.
Genny Xavier